sexta-feira, 30 de maio de 2008

Autoridade da atração

Muita gente sabe por alto, mas quase ninguém faz conta a respeito. O poeta Roberto Piva foi produtor de shows de rock durante o maior período de hiato em sua obra poética - entre as publicações de Piazzas [1964] e Abra os olhos e diga ah! [1976]. A importância dele para a difusão da cena rock n´ roll durante os anos de maior influência da MPB no país não é café pequeno. E ninguém aqui está se referindo a Mutantes ou aos grupos surgidos no ranço tropicalista; Piva aliás, faz questão de afirmar: "a gente não dava a mínima pra isso tudo".

Então aluno da Escola de Sociologia e Política e professor de Estudos Sociais em escolas da periferia de São Paulo, ele acabou lançando bandas obscuras como o Spectral Zôo - "o conjunto que mais se auto-marginaliza na cidade, conseguindo grana pro sanduíche já basta" -, Distorção Neurótica e a Glass Stone Game , primeiro grupo do baterista Duda Neves, que de Mark Davis [a.k.a. Fabio Jr] a Kiko Zambianchi, passou também pelas bandas de Zé Rodrix, Ná Ozetti, Zé Geraldo e até Arrigo Barnabé.

A mais lendária das investidas de Piva, no entanto, é a Made in Brazil [foto abaixo - em 1973], hoje com mais de 40 anos de estrada, famosa também pela "influência" visual nos Secos & Molhados, e posteriormente no Kiss. Ou você nunca ouviu dizer que as máscaras do Kiss foram "inspiradas" nas faces setentistas de Ney Matogrosso & cia? Há quem jure que a maquiagem de Paul Stanley, com sua estrelinha preta em volta de um dos olhos, é cópia descarada daquela usada pelo guitarrista da Made, Oswaldo Vecchione, já em 1969, alguns anos dos gringos aparecerem.



Famoso no mundo do rock como Zeca Jagger, o crítico Ezequiel Neves passou a integrar a Made in Brazil em 1976. Mas consagrou-se mesmo foi como produtor dos discos de Barão Vermelho e Cazuza, na década de 1980. Nos primórdios da Rolling Stone Brasil,em 1972, Neves escreveu sobre o poeta & agitador cultural. "Roberto Piva é um dos sujeitos mais explosivos que conheço. Sua capacidade de congregar jovens para a música pop destrói todas as cinzentas barreiras de concreto que asfixiam os paulistas. Antes de Piva organizar concertos, praticamente não havia nada."

E completou: "Quando cheguei de Londres, no final de 1970, encontrei todo mundo falando dos pop shows que ele organizava. Fui a vários deles. A garotada vibrava, os conjuntos eram bons [ótimos, alguns] e a atmosfera era puro Woodstock-mirim. Piva fazia sua apresentação de cada um deles e suas palavras amplificadas pelas caixas de som eram sempre aplaudidas. Piva me lembra um super-índio branco, um cacique que espera para sua tribo o nascimento dias melhores cheios de sol e música".

Sobre seu método de divulgação, o poeta falou à revista. "Eu vou de bairro em bairro e pela vibração descubro os hambúrgueres, os botecos, as sinucas onde a garotada daquele bairro se junta. Chegando a esse boteco, eu sigo o princípio de Platão, escolho o garoto mais bonito, entrego os lembretes impressos do show e digo: você tem que levar todo mundo no meu show. Aí eu consigo o que nenhum veículo de comunicação de massa vai conseguir, o toque pessoal da comunicação. Aquilo que o Fourier chamou de 'autoridade da atração´."

[continua...em páginas mais recheadas e suculentas, devidamente editadas e impressas, very soon.]

quinta-feira, 22 de maio de 2008

[Amor e] Fala

Fala

Falo de agrestes
pássaros de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras

de sangue
vivo de estrelas
que não cessam.

Falo do que impede o sono.

Orides Fontela, em "Teia".

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Another vision of sex

Acabo de assistir a um filme estranho. Não costumo dizer isso sobre quase nada e a conotação aqui não chega a ser negativa. Ganhei o DVD de presente de um amigo americano, o que endossa a hipótese de que a discussão em torno já descambou pro lado mais chato: o do problema de comportamento, o feminismo versus machismo & babaquismos afins.

Cavuquei por aí e só achei em português uma filmografia incompleta da diretora Catherine Breillat - que dirige longas do time "metafísica ou putaria das grossas?", e andou trabalhando com a Asia Argento, em filme que concorreu em Cannes ano passado. Mas as mostras de cinema daqui esse Anatomie de l´enfer/Anatomy of Hell[2004] não deve ter frequentado. Talvez não tenham conseguido enquadrar a produção no circuito de cinema experimental nem no segmento pornô.

Só pra constar, o filme tem atuação do Rocco Siffredi [ele mesmo, minha gente, o ator pornô mais famoso do planeta, que inspirou o nome do filho da Madonna]. O par é formado com a atriz britânica de expressão francesa Amira Casar, de beleza sóbria, descoberta pelo grande Helmut Newton, e que já posou também para Peter Lindbergh e para as inusitadas lentes de Terry Richardson.

Pois bem. Após tentar cortar os pulsos no banheiro de uma boate gay, uma mulher é salva por um homossexual,que depois caminha com ela pela cidade. Faz então uma proposta a ele: todo o dinheiro que ele quiser por quatro noites de observação. Mas o acordo não é tão simples assim. Ele tem que observá-la onde ela é "inobservável". Todos os ângulos, todos os pontos escondidos de seu corpo. "Já que você não gosta de mulheres, poderá ter uma visão imparcial sobre mim".

O que sucede na próxima hora e mais alguns minutos é uma total quebra de padrões morais e convenções estéticas sobre a beleza, o corpo, a genitália, o sexo e o senso comum sobre a pornografia. Uma desconstrução crua [e nua] dos jogos lascivos culturalmente aceitos. Peraí, mas ele não era homossexual? A diretora, em entrevista disponível nos extras do DVD americano, explica diretamente. "Questionar a homossexualidade dele é algo estritamente sociológico. O filme não trata disso, mas sim da origem do mundo. É como se eles fossem o primeiro homem e a primeira mulher confrontando suas naturezas e a diferença absoluta entre os sexos, o que pode ser uma violação assustadora, que eles vivenciam de formas distintas".

Existe uma tentaiva meio rasteira de explorar essas naturezas e atitudes de forma filosófica e metafísica. Isso através dos diálogos, pretensiosos mas irregulares. Tampouco se trata de erotismo - no sentido fantasioso e imaginativo. Além desta outra nudez, o foco está no total ressentimento de um pelo outro, mesmo que os dois personagens tenham sido totalmente desconhecidos até então. Eles aliás, não se tratam por nome [desconhecem a "identidade" do outro], vivenciando ali uma exploração paradoxalmente íntima e impessoal.

Sem meio nem fim a contar, nem mais discussões sobre a validade desse projeto ousado. Os curiosos que procurem aí, pela estrada afora, um torrent para baixar. Só não se deixem levar pelo extremo mau gosto da capa americana com fundo preto e letras garrafais brancas, envolvendo uma cena completamente fora de contexto. O trailer segue aqui embaixo.

sábado, 17 de maio de 2008

Horses

"Você não quer usar nem um pente?", perguntou Robert Mapplethorpe a Patti Smith ao mirar seu tufo de cabelos pretos completamente desgrenhados, num espaço que mal poderia ser chamado de estúdio, a cobertura do apartamento de seu então affair e marchand Sam Wagstaff, em Manhattan. Além de não se maquiar, ela não fez a higiene bucal após uma bela caneca de chocolate quente. "Ótimo. Agora seus dentes vão ficar todos marrons para a foto". Patti respondeu que não ia sorrir.

Ela então atirou um velho paletó masculino de segunda mão sobre os ombros e fez uma pose meio Frank Sinatra, imaginando-se Anna Karina num filme de Godard. Mapplethorpe alinhou o corpo de Patti para que a ponta do triângulo de luz natural que se formava naquele fim de tarde partisse da clavícula dela, como a asa de um anjo. Ele sabia que tinha feito ótimas fotos antes mesmo de revelá-las.

Era o primeiro álbum de Patti Smith - Horses [1975], e ela foi a primeira mulher sexualmente andrógina a posar para a capa de um disco na história da música americana. Tudo em preto e branco num período colorido e psicodélico. "Lembro que o departamento de arte [da gravadora] queria mudar meu cabelo para um penteado bufante. Eu disse a eles que Robert Mapplethorpe era um artista e que não deixava ninguém tocar suas fotografias", afirmou anos depois à biógrafa do fotógrafo(*).

O crítico de arte Paul Taylor viu aquela imagem numa loja de discos na Austrália e automaticamente se apaixonou. "Não sabia nada sobre Patti Smith ou o punk, mas comprei o disco pela força da fotografia. Era elegante e absolutamente moderna. Lembro-me de verificar o crédito da foto e imaginar: quem será Robert Mapplethorpe?"

Semanas depois, o retrato feito por Mapplethorpe e o disco de Smith ganharam destaque nas principais revistas americanas. Era a primeira vez que as fotos dele chegavam aos quatro cantos do país. "Sempre sonháramos em fazer sucesso juntos.Era tudo parte do nosso grande plano", explicou ela.



(*)Todas as citações foram retiradas de Mapplethorpe, biografia escrita por Patricia Morrisroe, e publicada no Brasil pela Record.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Revelação

Do outro lado da rua existe a caixa farta de desejos ocultos - o espelho de Alice, o Aleph, o olho de Bataille, e um profundo saco de feijões gordos suavemente penetráveis pelas nossas mãos e braços afundados até os cotovelos [costumávamos brincar de montar parzinhos claros e escuros, lembra?]; o grande problema, no entanto, ainda é escolher os grãos. Da próxima vez, metamos logo as cabeças do topo ao pescoço. Do outro lado da rua também fica o campo de centeio, mas quase ninguém vê. Aqui dentro agora faz um frio de doer, e além do mais ultimamente só temos pisado sobre objetos pontiagudos, enquanto nos lambuzamos com qualquer coisa doce-amarga que não preste, sorrindo feito hienas. A travessia é curta. Por isso mesmo, será mais fácil darmos as mãos.

It never entered my mind

De encontro por aí ou por aqui, criatura linda (e imperfeita), ainda lhe seguro pelos ombros, aguardando de volta a tua mirada para dizer: it never entered my mind. Depois volto a sacudir teu mundo em paz.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Alienígenas invadem o vizinho

Fiquei sabendo ontem por uma coluna de economia no Clarín [onde consta um detalhe curioso sobre os investimentos no filme]. Mal Lucrecia Martel finalizou sua aguardada película La Mujer Sin Cabeza, que compete esse ano em Cannes, e já está envolvida num outro projeto, que segundo ela, já passou do estágio embrionário.

"El Eternauta"[na foto abaixo], pelo pouco que sei, é uma série mítica de comics bastante cultuada na Argentina, uma história de ficção-científica em que alienígenas invadem Buenos Aires e enfrentam a resistência da população. Lucrecia foi também uma das produtoras de um documentário para TV sobre o criador da saga, Héctor Oestherheld, isso em 1995. Mas agora se trata de uma adaptação da história em quadrinhos para as telas de cinema, um gênero raro no cinema sul-americano e novo na carreira da diretora.

Coletei outras informações, mas há cerca de 2 horas foi a AFP que tratou de espalhar a notícia internet afora. E se eu fosse você, clicaria nesse link do Yahoo [en español] para sacar um pouco mais.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O pop flâneur dos anos 80

Falei da versão de Miles Davis no último post. Mas encontrei na internet um vídeo de Michael Jackson ensaiando Human Nature para a Dangerous Tour. Deve ser 1992. Uma das melhores canções pops já escritas, for sure. Em outras palavras e romantizando um bocado as coisas, sem forçar a barra, é como pensar na hipótese de um Michael Jackson negro flanando pela cidade no começo da década de 80. O resultado é belíssimo. Repare na letra.

[Existe uma frase em especial. "ELECTRIC EYES ARE EVERYWHERE". Ainda posso passar horas embasbacada com isso].

Vale lembrar, no entanto, que a canção é assinada por Steve Porcaro, na época integrante do Toto. [Aqueles caras que tocavam "Rosana", lembrou?] Pois bem, o irmão dele aliás, Jeff Porcaro, foi baterista da banda de Michael Jackson na gravação de Thriller.

Para conferir o vídeo basta fazer um cliquezinho aqui, bem discreto. [Virginianos são mesmo pessoas incríveis - ou você acha que todo mundo sai ensaiando até o "everybody!" e outros joguinhos de platéia?] Me arrisco a dizer que essa é até melhor do que a versão oficial da turnê em questão, que eu tenho gravada numa fita VHS amarelada, desde 1993.

Sobre o jazz e outros calafrios

Durante esses dias frios que passei confinada trabalhando sobre intermináveis revisões, a amada jukebox eletrônica de cada dia andou me transportando para décadas passadas e vidas futuras com álbuns inteiros. E todos vieram a calhar como jamais antes. Outra vez a mesma sensação estranha e louca de absorção e regurgitação ao mesmo tempo, fato corriqueiro nos meus dias de eclipse.

Primeiro foi Miles Davis - Sketches of Spain (1960), com arranjos de Gil Evans - que a reboque trouxe o poderoso Concierto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo, com a Orquestra Filarmônica da Filadélfia regida pelo John Williams [certamente você lembra dele como o compositor de trilhas como Superman e Guerra nas Estrelas]. E teve ainda Workin´ with the Miles Davis Quintet (1956) - com a melhor versão já feita de "It Never Entered My Mind"; Kind of Blue (1959) e Round About Midnight (1955), nessa ordem.

Com um pé na Espanha e outro numa Florianópolis ibérica, resolvi baixar os dois volumes da mágica Antología de Paco de Lucía, que se tornou a obsessiva-compulsiva master dos últimos dias. Também teve espaço para o brilhante encontro dele com Al Di Meola, que qualquer dia comento melhor. Sarah Vaughan com seus três discos em português e versões de Beatles, chegou mais recentemente à jukebox, junto de uma coletânea francesa de Chet Baker - quem procura acha, meus amigos - e eu achei : Le Poet Du Jazz é o nome.

A vanguarda coexiste com os clássicos sem um pingo de chatice na presença de Laurie Anderson. Registros brilhantes, desde nosso último jantar à luz de velas e estrelas em Mamanguá, que ganhou o tempero inesperado da fase pop de... Miles! You´re Under Arrest (1985) traz recriações de hits como Human Nature, de Michael Jackson [aqui ao vivo em Montreal] e Time After Time, da Cindy Lauper.

domingo, 11 de maio de 2008

Mas precisa fumar e falar palavrão?

Tomada por furores transcedentais, acabei esquecendo de indicar uma preciosidade aos evocadores e saudosistas de 68, no último post. Encontrei no Youtube um behind the scenes de 10 minutos de Satyricon, com Max Born cantando Bob Dylan, diga-se de passagem. O elenco faz comentários e elogios ao jeito felliniano de ser - "I don´t think he needs reality" - enquanto o muso Hiram Keller aparece fumando e proferindo gentilezas & meia dúzia de "fuckings", com aquele charme intrínseco que não custa nada ressaltar. [Juro que não foi de propósito - mas vocês devem se lembrar de uma pessoa conhecida, assim... quase instantaneamente].

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Hiram Keller

Disseram ter visto um novo Hiram Keller em Florianópolis, no último feriado. Caminhando impávido pelo vendaval, talvez. Não sei. Deve ter sido o ciclone ou o vinho que subiu, embaralhando as idéias de todos momentaneamente, mas de fato, não o encontrei. [Minha vocação bacante permanece guardada, por supuesto].

A personificação da beleza era ele, Ascyltus. O homem que ergueu a espada para roubar Gitão, o andrógeno perfeito interpretado por Max Born. O próprio Keller, Hiram. Cabível ainda chamá-lo de Eros, pelo menos em imagem e semelhança. Já morreu, pelo que me consta. Ele, os olhos, a boca e a pele. "O rosto", diziam.

Ator britânico de formação teatral, foi "achado" por Federico Fellini ali pelas bandas de Londres em 68, como personagem da peça Hair. Ele e Martin Potter - o ora parceiro, ora rival Encolpio, são os dois mais belos romanos que peregrinam pela sociedade dos escravos libertos em Satyricon, adaptação do livro homônimo e inacabado de Petrônio. Filme produzido por Alberto Grimaldi, o mesmo da mágica Trilogia da Vida de Pier Paolo Pasolini.

Nos Estados Unidos, aliás, nomearam a película como The Degenerates, vejam só. Andaram esquecendo também essa fase do cinema felliniano, que comporta também seu longa Roma, realizado em seguida. Aliás, aquela Roma onírica e amoral "before Christ, after Fellini", também não vi mais ninguém pintar igual. Mas por minha conta, sigo procurando por Ascyltus & Encolpio por aí.