domingo, 12 de setembro de 2010

Das grandes viradas sobre-humanas



URUBU EM CARNE VIVA

Por Roberto Bicelli, em 1983

Em 63, quando Roberto Piva lançou “Paranóia” (Massao Ohno) todos se deram conta de que havia algo de novo em todas as frentes. Fosse possível captar numa Polaroid Anímica as caras e bocas que se fizeram então, imagino a galeria Lombroso Futurista que teríamos a examinar...Para poucos foi o Satori. A certeza que ele vinha como divisor de águas da poesia.

Se Oswald de Andrade/Dr.Pilatos dizia-se ironicamente "um Virgílio um pouco mais nervoso no estilo", Piva nos devolvia a poesia Sucuri-Cascavel. Aquela capaz de cair sobre nós da árvore da imaginação, de colear pelo asfalto paulistano, de triturar a cidade em seu amplexo de Titã e sua baba venenosa.

Os turistas intelectuais tinham razão de acreditar que cobras rolavam pelas ruas, que o diabo estava à solta.

Zilco Ribeiro disse-me, então, que pessoalmente Piva era uma pessoa dulcíssima. Recusei-me a acreditar, mas, na verdade, como o Brasil ainda era uma democracia, nosso herói só bebia guaraná e ninguém reclamava. Piva preparava a goela para talagar todo mel e toda merda que viriam a seguir.

Em 64, sai “Piazzas”, outra edição de Massao Ohno com enorme mudança! Onde estavam as fotos e ilustrações do genial Wesley Duke Lee? E os versos longos que exigiam o retângulo, os braços longos do Homem de Borracha?

“Piazzas”, livro simples, fran-cis-cano: uma capa P&B com dois grampos sustentando um conteúdo próximo da poesia grega.

Depois, onze anos sem publicar e sem que nos déssemos conta disso! Tanta poesia em torno do homem... Piva onipresente, farejando, vivendo dionisiacamente para comer, beber, trepar, ler, instigar e arrebentar alguns focinhos que não lhe agradavam. Ou seja, fazendo poesia o tempo todo.

Quando, finalmente, escreve um livro “abra os olhos & diga ah” empresta os originais para um Amor cuja mãe, vendo aquela maçaroca de hieróglifos, encaminha-os para o destino que os críticos Karetas mais apreciariam: a lata de lixo! Tudo bem se perdeu um livro, escreve-se outro: “abra os olhos & diga ah”(novamente Massao Ohno), 1976.

Em seguida, uma sucessão de títulos; “Coxas”, “20 poemas com brócoli” e “Quizumba”. Deste cumpre-nos falar: editado pela Global, com capa e ilustrações do extraordinário Hélio de Oliveira, arte final de Levi Leonel e com todos os direitos reservados a quem tiver a poesia como cúmplice.

Ao observarmos um grande mestre de Tai Chi Chuen em ação, temos a impressão de que ele está brincando, que aqueles movimentos jamais poderiam ser mortais. Na verdade, ele engole etapas, insinua possibilidades, negaceia... É o que sinto ao percorrer esta Quizumba que vai do conflito ao rififi: Piva assimilou a Poética Universal e aprontou com tranqüilidade de mestre seu destranque, seu bafafá, seu angu-de-caroço.

Poesia que vai do Heavy Metal à Bossa Nova, do Maracatu à Valsa Vienense.
Interessa observar a limpidez que Piva atinge em meio a esse estrupício todo. É o poeta no meio do Caos brilhando na cintilância estelar de seus poemas.

“Raça irritadiça”, Piva capta a geléia geral deste tempo e “só acredito na geléia genital”.

Depois de ter estoicamente permanecido oito anos sem sair de São Paulo, ele prega o retorno à Agricultura...

Profeta que sou acho que a primeira lufada da guerra atômica levará uma cama-de-gato do poeta, curvado no simples ato de plantar alecrim.

Este “Quizumba” -escrito em 81- encontra-o na maior exacerbação urbana, já com toques de roça total: “queria tomar pico, mas na roça/ queria virar mico sem a coça/ queria ouvir Chico lá na choça”...

Em Quizumba, Roberto Piva dá claros sinais de estar em pleno processo de iniciação, que leva o poeta-voyeur ao poeta-vidente. Reivindico o trocadilho e pontuo com versos de “Quizumba”: “mas o caminho de volta eu só conto/ a esse urubu em carne viva/ que grasna na sacada.”

Texto originalmente publicado no jornal da UBE - União Brasileira de Escritores - e cedido pelo autor após sua leitura na última homenagem realizada ao poeta Roberto Piva, na Casa das Rosas (SP), em julho.