sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Você é um freela no armário ou um CLT enrustido?

Amor freela, sexo freela, trabalho freela, salário freela, o gerente de banco trocando tanto de agência e de carteira de clientes que mais parece freela, moradia freela, cidades freela, amizades freela (aquelas que aparecem uma vez por ano num churrasco). Em todos os casos, tem o freela fixo, o freela esporádico, o freela imprevisível e o freela fiel. Só os nossos impostos e contas a pagar é que não são freelas. Isso porque eu ainda não comecei a falar da vida na CLT. A vida na CLT do amor, do sexo, do salário, das amizades é aquela que paga pouco e vai pingando todo mês, consome demais, enche a barriga do patrão e nos garante algum comodismo e ilusão para fazer dívidas em parcelas a perder de vista. São dívidas que as instituições -- e sobretudo as pessoas -- fazem questão de cobrar com juros para que assim nos tornemos escravos ou dependentes delas.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Jaçanã, 25 de agosto

A história do Jaçanã, este bairro longínquo de onde falo na zona norte de São Paulo, remete primeiramente ao simpático Frango d'Água, que o poeta Roberto Piva me apresentou ao vivo e a cores no Jardim Botânico em 2008 ou 2009. Naquele domingo de sol, eu possivelmente cumprimentei o bicho como se fosse um pato, mas acho que ele não se entende como pato e por isso mesmo não me cumprimentou de volta. 

Foi aqui, neste bairro de ruas inteiras com placas de vende-se e aluga-se espremidas entre fábricas abandonadas, outdoors da Odebrecht e árvores de Eucalipto fadadas ao desaparecimento, que Adoniran Barbosa esteve diversas vezes para filmar nos estúdios da extinta Companhia Maristela de Cinema, inspirando o samba "Trem das Onze". O samba fala de dever, de despedida, do obstáculo para o amor e de um transporte público que nunca foi bom é o esquizofrênico símbolo de uma cidade que quer ser Nova York sem frequentar as próprias esquinas. 

No bairro do frango d'água, que ainda hoje abriga os alpendres projetados por Ramos de Azevedo para homenagear Dom Pedro II no hospital geriátrico e de convalescentes que ainda leva o nome do imperador, centenas ou milhares ou milhões de leprosos -- de acordo com a sua imaginação -- eram empilhados para morrer longe da visão da cidade umbiguista, da riquinha chatinha baronesa do café, da gente quatrocentona e do que viria a ser esse povo tão misturado, metido a besta e cosmopolita. 

Quando eu era criança, havia nesse hospital uma velha senil que ninava uma boneca em voz alta às 5 da manhã, de modo que era possível ouvi-la tão nítida quanto o rádio do meu avô no andar de baixo da casa, enquanto eu vestia meu uniforme escolar e ele me preparava, religiosamente, um copo de leite achocolatado e outro de suco de laranja. Ainda dentro do hospital, havia também um necrotério onde eram velados os velhos que morriam, sendo que as sirenes tocavam duas vezes ao dia anunciando a saída do cortejo fúnebre (de modo que eu, criada em colégio católico, grudava na janela da sala e observava os carros lentos e suas lanternas baixas com uma expressão francamente solene, fazendo o sinal da cruz). 

As doenças que hoje empilham velhos morimbundos a 3,5 quilômetros do metrô são diferentes e não tem mais nem estúdio nem cinema ao redor, mas você ainda pode topar com calçadas esburacadas, botecos de forró-bodó, moradores de rua numa eterna viagem de crack, pedintes de esmola que tocam as mesmas campainhas todos os dias, a mulher sem seios que a cada três ou quatro semanas reconta a história do câncer de mama com a mesma expressão triste e os mesmos R$2 em troca, a esquizofrênica em surto que tira a roupa na rua em pleno frio e até mesmo os mesmos cretinos que dão risada dela sem ajudar em absolutamente nada. 

A única coisa que me surpreende, no fim de agosto de 2015, é que algumas praças permaneçam ainda tão ternas, tão românticas e tão convidativas para comer um algodão doce ou uma pipoca de mãos dadas, mesmo que agora você só consiga encontrar de verdade uma barraca de caldo de cana e outra de churrasquinho de gato. Se eu fosse o frango d'água, eu descolava uma poça e voltava a morar por aqui. 

Meu avô, o do suco de laranja, completaria 91 anos hoje.