sábado, 31 de julho de 2010

Subúrbios melancólicos & funerais coloridos


Quando o álbum Funeral despontou como a novidade musical mais amada de 2004, foi como se finalmente percebessemos os sinais de um lirismo mais ensolarado no mundo do rock. Alta carga emotiva trabalhada criativamente em texturas sobrepostas de percussão, violinos, guitarras, baixo, pianos, acordeões, sopros, coros e até xilofones numa sonoridade grandiosa e de cores fauvistas. Art-rock. A banda havia produzido novas atmosferas sob influência do que de melhor Brian Eno & Daniel Lanois fizeram junto ao U2 [entre outras coisas]. Poderia ter sido piegas, mas passou longe. Funeral, do Arcade Fire, é tudo o que Viva La Vida, do Coldplay, pretendia ser e não conseguiu.

Em 2005, no palco do Tim Festival em São Paulo, os 7 integrantes da banda se revezaram entre os instrumentos. Eles preenchiam todos os espaços possíveis. Wake Up foi eleita como deixa para a abertura dos shows da Vertigo Tour, do U2. A melancolia de Funeral é particular. Não há dores pontiagudas, como no BlocParty, ou astrais soturnos, como no TV On The Radio: no Arcade Fire, a tristeza é uma lagriminha que escorre ao visitarmos o passado numa velha esquina.

Veio Neon Bible, gravado numa igreja comprada pela banda, em 2007. É curioso como os canadenses cantam preces para diferentes deuses. Neil Young, Leonard Cohen, Joni Mitchell: religião não se discute. No Arcade Fire as coisas são apolíneas. Não há dentes podres, olhos roxos ou expressões de ressaca: todo mundo é limpinho e tem cara de nerd. São músicos pragmáticos e de extrema sensibilidade.

Assim parece outra vez em The Suburbs, que já rola por aí. O álbum mistura simpáticas melodias de piano com produções mais minimalistas sobre o violão e momentos de maior euforia em 16 faixas que parecem concebidas como uma sequência perfeita, uma trilha sonora de filme ou coisa assim. Além da faixa-título, canções como Empty Room devem emplacar com facilidade. Mas a novidade fica por conta dos timbres mais noturnos e sintéticos em canções como Month Of May e Deep Blue. Em We Used To Wait, algumas passagens lembram Depeche Mode, enquanto um piano segue pontuando uma nota infinita. Resquícios do rock inglês oitentista transparecem em City With No Children, momento mais dark do disco.

Não se trata de um álbum irrepreensível, tampouco surpreendente. Nada que mereça a pecha de "incrível" ou "magnânimo", como o disco de estreia. Mas The Suburbs triunfa em cima da competência e aplicação do grupo ao agregar novos elementos a uma identidade já inconfundível. E o que interessa, no fim das contas, é que estamos em 2010 e um novo pedaço de arte respira entre tantas banalidades instantâneas. A viagem do Arcade Fire tem, atualmente, algumas das paisagens mais bonitas do rock.




domingo, 18 de julho de 2010

1 poema, 10 livros e 10 canções para um inverno em SP


RAYMOND CARVER

(tradução CIDE PIQUET, publicado hoje na Folha de S. Paulo)

MEDO

Medo de ver a polícia estacionar à minha porta.
Medo de dormir à noite.
Medo de não dormir.
Medo de que o passado desperte.
Medo de que o presente alce voo.
Medo do telefone que toca no silêncio da noite.
Medo de tempestades elétricas.
Medo da faxineira que tem uma pinta no queixo!
Medo de cães que supostamente não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter demais, mesmo que ninguém vá acreditar nisso.
Medo de perfis psicológicos.
Medo de me atrasar e medo de ser o primeiro a chegar.
Medo de ver a letra dos meus filhos em envelopes.
Medo de que eles morram antes de mim, e que eu me sinta culpado.
Medo de ter que morar com a minha mãe em sua velhice, e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.
Medo de acordar e ver que você partiu.
Medo de não amar e medo de não amar o bastante.
Medo de que o que amo se prove letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demais.
Medo da morte.

Já disse isso.

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1) Henri Michaux - "Um Bárbaro na Ásia"
2) Sandor Ferenczi - "Thalassa"
3) Gay Talese - "O Reino e o Poder"
4) Camille Paglia - "Personas Sexuais"
5) Joca Reiners Terron - "Do Fundo do Poço Se Vê a Lua"
6) Jorge de Lima - "Anunciação e Encontro de Mira-Celi"
7) Paul Eluárd - "Últimos Poemas de Amor"
8) Antonio Lobo Antunes - "O Esplendor de Portugal"
9) Nabokov - "Lolita" (é, eu ainda não li)
10) Nick Hornby - "Febre de Bola"

Se eu já li tudo isso? Não. Mas o inverno segue até setembro.

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1) Cássia Eller - "Sonhei Que Viajava Com Você" (Itamar Assumpção)
2) Antony Hegarty - "If It Be Your Will" (Leonard Cohen)
3) Tom Waits & Crysal Gale - "This One´s From The Heart"
4) Bettye Lavette - "No Time To Live"
5) Dusty Springfield - "The Look Of Love"
6) The Velvet Underground - "Pale Blue Eyes"
7) Elvis Costello - "Alison"
8) Prince - "Crimson & Clover"
9) The Police - "Does Everyone Stare?"
10) PJ Harvey - "A Place Called Home"

terça-feira, 13 de julho de 2010

Top 10 - Homens & Mulheres do Rock


Você vai dizer que eu sou a menininha paga-pau de guitar hero, duvidar do meu gosto, da minha formação musical; vai dizer que aposta e ganha: "você, Renata, guarda todos os discos do Bon Jovi nos porões do Jaçanã", vai falar que não gosto de banda que não tem homem bonito. Mentira. Tá certo que meus Backstreet Boys sempre foram Bono & Larry Mullen Jr, que eu tive amor platônico por Michael Hutchence, que Jim Morrison e suas calças de couro iluminaram meus sonhos por anos a fio e que Elvis não morreu (estou falando do Costello).

Sim, eu tive um pôster do Bon Jovi -- cabelos ao vento, anos 1990 -- colado na porta do quarto e só tirei de lá quando a velha Bizz encartou James Hatfield & sua guitarra fálica, de regata branca e tatuagem no braço. É isso aí. Não vou pular os óbvios, mas vou listar aqui um Top 10 com bônus dos meus sex symbols do rock. E pra homarada se divertir com todas as hipóteses do mundo, listarei também as mulheres. Hoje é Dia Mundial do Rock e eu vou acabar com aquela listinha frouxa da Rolling Stone Brasil, que conseguiu a façanha de enquadrar a Pitty como uma mulher sexy num universo povoado por Debbie Harry, PJ Harvey e Rita Lee, em diferentes tempos. Eles não sabem nada. Nós sabemos tudo.


TOP 10 MEN

1) Michael Hutchence
Pra não dizerem que eu repeti tudo que já disse.

2) Mick Jagger
Que é símbolo absoluto de tudo que é rock e tudo que é sexy. E foda-se se é clichê.

3) Jim Morrison
Que é pai espiritual do Michael Hutchence. E que berrava com aquelas calças de couro...

4) Elvis Costello
Se você não entendeu o porquê de Elvis Costello estar nessa lista é porque você não entendeu nada.


5) Jeff Buckley
O garoto prodígio que todas nós queríamos pegar no colo, mas não conseguimos.


6) David Bowie
Em todas as fases e todas as poses.

7) John Taylor (Duran Duran)Mesmo já na casa dos 50, o tiozinho ainda me arranca suspiros. Mais que o Simon Le Bon.

8) Bryan Ferry
Observem e aprendam com qualquer vídeo dele: isto é charmoso e sexy.

9) Brett Anderson (Suede)
O famoso hétero (ou bi?) com jeito de gay que pega todas e todas adoram. Do glam ao grisalho: indispensável.

10) Bono (U2)
De 1987 a 1997 temos aí uma baita fase boa. Mesmo chuby-chuby.

TOP 10 WOMEN

1) Kim Gordon (Sonic Youth)
Corta pro show do Sonic Youth no Claro Q É Rock! em São Paulo, 2006. Passava de meia-noite na enlameada Chácara do Jockey. Homens e mulheres, gays, héteros, bissexuais e assexuados: todos se aglomeravam frebte ao palco e tremiam feito garotinhas virgens diante de um galã da Malhação. Depois gritavam, murmuravam, assoviavam e promoviam um festival de dança burra e mini-transes nos intervalos dos comentários sobre as pernas, o vestido, o salto e a indefensável pose de Kim Gordon -- meio velha, descabelada, com a maquiagem gasta-- com o baixo nas mãos e, de vez em quando, cantando e dançando. Isso é o rock n´roll.

2) Kim Deal (Pixies/Breeders)
Kim & Kelley. Kelley & Kim. A doida e a lésbica. A presidiária e a baladeira. Gêmeas, desleixadas, têm os olhos azuis e são sensacionais.

3) PJ Harvey
Não quero decidir de Polly Jean é bonita ou feia. Pouco importa. Polly Jean com ou sem batom, com ou sem guitarra, no piano, de pé, submersa: é muito mais sexy que todas as bundas assassinas do domingo à tarde.

4) Debbie Harry (Blondie)
Todas nós queremos ser Blondies, com esse cabelo fantástico, rodando uma echarpe no palco.

5) Rita Lee
Um amigo do meu pai disse que, nos anos 70, o macho adolescente da mão peluda tinha duas tentativas por dia: Sônia Braga e Rita Lee.

6) Dolores O´Riordan (Cranberries)
Aos que curtem as mignons, especialmente as que berravam nas catedrais de Belfast.

7) Alanis Morrissette
É mala, já teve a fase hipponga e só fez 1 disco que preste (eu acredito em Jagged Little Pill). Mas vale a indicação.

8) Cat Power
Alô, macho moderno com cacoete indie! Concordo contigo, a magrelona estilosa é das mais sugestivas.

9) Nico (Velvet Underground)
Nico Icon to All Tmorrow´s Parties.

10) Patti Smith
Porque até Robert Mapplethorpe já curtiu se encostar nesse corpinho ossudo.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Mala na mão & asas pretas

PD & RD: Mala na Mão & Asas Pretas para quem?
ROBERTO PIVA: É uma forma de dizer que você está em trânsito no planeta.

PD & RD: Você se considera em trânsito, sempre?
ROBERTO PIVA: Estou em trânsito e quando morrer não voltarei jamais.

O trecho acima foi retirado da primeira entrevista que fiz com o Roberto Piva, em 2007, acompanhada pela jornalista Paula Dume. Publicada pelo Cronópios. Foi meu primeiro encontro com o Piva e, fazendo agora uma rápida releitura, não me vem à cabeça por que raios fizemos essas perguntas. Mala na Mão & Asas Pretas é o título do segundo volume das obras reunidas do poeta pela Editora Globo.

Como bem disse a Paula no abre do texto, "o planeta acusa que estar em trânsito é um bom sinal para os tempos". Mas mesmo que Massao Ohno, Alberto Guzik, Roberto Piva e Ezequiel Neves, por conta dos cânceres malditos, já tivessem dado os sinais da passagem, a morte bem que podia nos dar folga por longos tempos enquanto a gente se conforma com o imenso buraco que ficou. Chega de obituários nesse blog! E vamos todos seguir em frente.

A quem interessar, posto abaixo as páginas scanneadas do breve perfil de Alberto Guzik que fiz para a revista EnCena, ano pasado. A primeira entrevista que fiz com Massao Ohno, para o site da Faculdade Cásper Líbero, também em 2007, será reproduzida em breve, assim que eu encontrar um jeito. O conteúdo do antigo site não foi migrado para o novo portal da instituição.

sábado, 3 de julho de 2010

O último heroi magnético

Roberto Piva, 1937 -2010

“Trouxe algumas coisas pra você. Não posso esquecer, são muito importantes. Espere um pouco, está tudo aqui, anotado num papel, no meu bolso”, afirma esbaforido o poeta Roberto Piva, pouco mais de 70 anos, enrolando-se por completo com o cinto de segurança do carro em que acaba de entrar, em frente ao prédio onde mora, no centro de São Paulo. “Achei, é João do Rio: A Alma Encantadora das Ruas. Absolutamente genial. Ele era jornalista como você e escrevia sobre as coisas da cidade. Estou impressionado. Se eu tivesse lido isso há cinqüenta anos, o Paranóia não seria exatamente o Paranóia, e muitas coisas não seriam como são”.

O senhor em questão deve medir cerca de um metro e setenta, mas o corpo, ainda robusto, indica o passado colegial de halterofilista. Veste bermuda verde, camiseta e meias brancas, calça tênis de caminhada e estampa no rosto os óculos de armação preta emendados por um esparadrapo do lado esquerdo. Pede pra tocar pro Jardim Botânico. Seu pedido é uma ordem. Em seguida, dispara três outras sugestões literárias. Algo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa e dois volumes de História sobre o III Reich. Parece animado em pleno domingo, às 9 da manhã; pede logo para abrir os vidros e, apoiando na janela o braço direito, reclama do barulho dos bares vizinhos e diz que o prefeito prometeu “caçar os alvarás desses cafajestes”, mas não cumpriu.

Atravessamos a cidade. Basta estacionar o carro para ouvir do porteiro que ontem choveu forte e parte do parque virou lama. Mas Piva não desiste do passeio. Ele passa os dias praticamente restrito a seu apartamento repleto de poeira, livros, pôsteres de jazzmen e quadros de artistas como Wesley Duke Lee e Rodrigo de Haro. Por isso aproveita para marcar as entrevistas que concede no meio do verde. Mas não serve qualquer pracinha. “O Parque do Ibirapuera é terrível”. Tem que ser em Jarinu - cidade interiorana próxima à Jundiaí -, no Parque Estadual da Cantareira, no Templo Budista Zu Lai ou, pelo menos, no Jardim Botânico. Por ali, ele caminha em direção a um lago, escolhe uma árvore para se deitar à sombra e pede que a gente tire um cochilo de meia hora antes de ligar o gravador.

Obviamente, não consigo pregar os olhos e fico o tempo todo observando uma imensa gansa choca caminhar ao nosso redor. Roberto Piva acorda sozinho. Diz que os animais nos procuram porque nossas energias são amigáveis, aponta algumas espécies de pássaros e avisa que mais adiante será possível escutar o ronco dos bugios. A atração pelas forças da natureza começou na infância, quando morava com os pais numa fazenda em Analândia, interior de São Paulo, onde afirma ter sido iniciado no xamanismo por um velho caboclo. “Eu tinha 12 anos. Ele me mandava olhar para o fogo e descrever tudo que via; depois interpretava. Era um empregado da fazenda e tinha essa dimensão cósmica. Era um poeta intuitivo, um xamã”.

Estou diante de alguém que declara acreditar na vida como celebração, no Baco, na poesia em função das estações. Do mesmo poeta que, em 1969, cursou uma espécie de mini-faculdade sobre Dante Alighieri com o então Adido Cultural da Itália em São Paulo, Eduardo Bizzarri. De um homem que afirma que os primeiros poetas eram xamãs cuja inspiração se ligava às técnicas arcaicas do êxtase. “Em Dante, por exemplo, estão lá todas essas características: os 3 reinos, a ligação mágica que ele tem com o número 9. Ele passou 9 dias com febre e, durante esses tempo, teve a intuição de A Divina Comédia”, conta.

Trata-se do mesmo poeta que escandalizou a literatura paulistana em 1963, ao lançar Paranóia, seu primeiro livro, que sumiu do mapa em circunstâncias jamais esclarecidas. Em comum com João do Rio, o Piva sessentista tem a verve e a paixão pelas ruas. São poemas hipnóticos, delirantes, no vulto apocalíptico que a metrópole paulistana ganharia décadas depois. “Eu tive uma visão mágica da cidade, como uma grande carniça apodrecendo. Estava sob efeito das minhas leituras dos futuristas, dos surrealistas, de Murilo Mendes, Jorge de Lima, da beat generation, das andanças, das orgias, das vivências e tudo isso. E então, o Wesley Duke Lee, grande artista plástico, me procurou e quis fazer umas fotografias da cidade dentro dessa enorme alucinação. E o editor Massao Ohno topou fazer o livro mesclando as fotografias e os poemas”. Desde 1963, Piva lançou 10 livros de poemas e uma antologia poética. São pérolas como o erótico Coxas (1979) e o místico Ciclones (1997). Sua obra completa foi publicada em três volumes pela Editora Globo entre 2005 e 2008.

Formado em Sociologia e Estudos Sociais, Piva foi professor ginasial durante as décadas de 1970 e 1980, quando deixou crescer os cabelos e o bigode e passou a usar calças boca de sino por influência do movimento hippie da Praça da República. Foi produtor de shows de rock. “Nunca me liguei naquelas canções de protesto, tudo aquilo era um lixo”, diz. Produziu concertos para milhares de pessoas e alavancou bandas pioneiras como a Made in Brazil. Em entrevista concedida à Revista Rolling Stone, em 1972, revelou como conseguia juntar tanta gente. “Eu vou de bairro em bairro e pela vibração descubro os hambúrgueres, os botecos, as sinucas onde a garotada daquele bairro se junta. Chegando a esse boteco, eu sigo o princípio de Platão, escolho o garoto mais bonito, entrego os lembretes impressos do show e digo: você tem que levar todo mundo no meu show. Aí eu consigo o que nenhum veículo de massa vai conseguir, o toque pessoal da comunicação. Aquilo que o Fourier chamou de autoridade da atração1”. Na lembrança do baterista Duda Neves, um dos músicos descobertos por Piva, o poeta ainda impõe respeito. “Ele parecia um cacique, um índio. O espírito dele deve ter vindo desse lado, dos guerreiros indígenas. Tinha uma puta de uma autoridade sobre a gente. E estava sempre muito bem vestido e elegante, não era um hippongo sujo. Foi um grande mentor. Era muito bem informado musicalmente não apenas sobre rock, mas sobre o jazz. E era homossexual. Isso numa época em que qualquer cabeludo era chamado de bicha nas ruas de São Paulo”.

Piva treme um pouco. Sofre de Mal de Parkinson há quase 10 anos, mas resolve driblar as restrições e beber uma cerveja gelada no restaurante do Jardim Botânico. Observa meu pescoço girar enquanto reparo nos casais de mãos dadas em seu jogging semanal. Comenta sobre as meninas. Diz que elas estão cada vez mais bonitas, cercadas por homens cada vez mais feios. “Se você disser que ele gosta de mulher, ele nega. O Piva é o primeiro homossexual que eu conheço que depois dos 60 começou a olhar mulher na rua. Ele é praticamente um heterossexual enrustido”, aponta, aos risos, o poeta e amigo Roberto Bicelli. Exageros à parte, Piva parece evitar os rótulos. Quase todos. Rejeita a esquerda e a direita, mas se diz monarquista desde 1968. “Percebi que a maioria da população brasileira é aristocrática. E além do mais, este é o único regime que, devido à extrema verticalização da cúpula, permite maior anarquia das bases, como já dizia o Salvador Dali”.

Roberto Piva reclama do preço do condomínio. Vive de palestras pagas por centros culturais e prefeituras. Tem lapsos de memória ou simplesmente prefere dizer que não lembra das coisas. Está mais interessado em jogar conversa fora. O que a essa altura, me parece bom. Ele mostra um gavião no céu. Depois esfrega cuidadosamente as mãos nas plantas aromáticas do jardim. Até que se cansa do passeio e decide ir embora. “O Parkinsoniano não gosta que fiquem ao lado dele, tentando amparar. Vá andando que eu te alcanço”. Não sei. É como se estivéssemos presos por um elástico invisível nas cinturas: por mais que eu me afaste, sigo arriscando a meia volta, implacavelmente atraída pelo balanço hesitante desse corpo que caminha. A cada passo, praticamente lhe escuto dizer: “eu sou uma alucinação na ponta dos seus olhos2”.

*Roberto Piva faleceu hoje, após quase 30 dias de internação no Incor-SP. O corpo será velado a partir das 22:30 no Cemitério do Araçá e será cremado às 11 da manhã no Crematório da Vila Alpina.

** Renata D´Elia, autora deste perfil (de maio de 2009), escreveu o livro-reportagem “Os Dentes da Memória – Uma Trajetória Poética Paulistana”, licenciado para publicação, que remonta 50 anos da história conjunta dos poetas Roberto Piva, Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Futebol de prosa e futebol de poesia





O texto é do meu cineasta favorito. O assunto é um dos meus favoritos: o futebol de Copas. E claro, também o jornalismo. Li pela primeira vez no recém-extinto caderno Mais! da Folha de S. Paulo, em algum lugar dos anos 2000. Foi escrito, no entanto, meses após a final da Copa de 1970.

Futebol de prosa e futebol de poesia

Por Pier Paolo Pasolini (Tradução: Mauricio Santana Dias)

Em meio ao debate atual sobre os problemas linguísticos que separam de forma artificial literatos de jornalistas e jornalistas de jogadores, fui indagado por um gentil repórter do Europeo; mas minhas respostas saíram cortadas e depauperadas no tabloide (por causa das exigências jornalísticas!). Porém, como o assunto me interessa, gostaria de voltar a ele com mais calma e com a plena responsabilidade sobre aquilo que digo. O que é uma língua? “Um sistema de signos”, responde hoje do modo mais exato um semiólogo. Mas esse “sistema de signos” não é apenas, necessariamente, uma língua escrita-falada (esta que usamos agora, eu escrevendo e você, leitor, lendo).

Os “sistemas de signos” podem ser muitos. Vejamos um caso: você, leitor, e eu estamos numa sala onde também estão presentes Ghirelli e Brera [1], e você quer me dizer algo sobre Ghirelli que Brera não deve ouvir. A situação impede que você me fale por meio do sistema de signos verbais, e então é preciso recorrer a outro sistema de signos, por exemplo, o da mímica; aí, você começa a revirar os olhos, a entortar a boca, a agitar as mãos, a ensaiar gestos com os pés etc. Você é o “cifrador” de um discurso “mímico” que eu decifro: isso significa que possuímos em comum um código “italiano” de um sistema de signos mímico.

Outro sistema de signos não verbal é o da pintura; ou o do cinema; ou o da moda (objeto de estudo de um mestre nesse campo, Roland Barthes) etc. O jogo de futebol também é um “sistema de signos”, ou seja, é uma língua, ainda que não verbal. Por que digo isso (que em seguida pretendo desenvolver esquematicamente)? Porque a “querelle” que contrapõe a linguagem dos literatos à dos jornalistas é falsa. E o problema é outro.

Vejamos. Toda língua (sistema de signos escritos-falados) possui um código geral. Tomemos o italiano: usando esse sistema de signos, você, leitor, e eu nos entendemos porque o italiano é um patrimônio nosso, comum, “uma moeda de troca”. Entretanto, cada língua é articulada em várias sublínguas, e cada uma delas possui, por sua vez, um subcódigo: os italianos médicos se compreendem entre si – quando falam o jargão especializado – porque todos eles conhecem o subcódigo da língua médica; os italianos teólogos se compreendem entre si porque detêm o subcódigo do jargão teológico etc. etc.

A língua literária é também uma língua de jargão, com um subcódigo próprio (em poesia, por exemplo, em vez de dizer “speranza” é possível dizer “speme”, mas não estranhamos essa coisa engraçada porque se sabe que o subcódigo da língua literária italiana demanda e admite que, em poesia, sejam usados latinismos, arcaísmos, palavras truncadas etc. etc.).

O jornalismo nada mais é que um ramo menor da língua literária: para compreendê-lo, valemo-nos de uma espécie de subsubcódigo. Em palavras pobres, os jornalistas são apenas escritores que, a fim de vulgarizar e simplificar conceitos e representações, se valem de um código literário, digamos – para ficar no campo esportivo –, de segunda divisão. Assim, a linguagem de Brera é de segunda divisão se comparada à linguagem de Carlo Emilio Gadda e de Gianfranco Contini.[2] E a língua de Brera é, talvez, o caso mais bem qualificado do jornalismo esportivo italiano.

Portanto, não existe conflito “real” entre escrita literária e jornalística: o problema é que esta, coadjuvante como sempre foi, agora exaltada por seu uso na cultura de massa (que não é popular!), encampa pretensões um tanto soberbas, de “parvenu”. Mas vamos ao futebol. O futebol é um sistema de signos, ou seja, uma linguagem. Ele tem todas as características fundamentais da linguagem por excelência, aquela que imediatamente tomamos como termo de comparação, isto é, a linguagem escrita-falada.

De fato as “palavras” da linguagem do futebol são formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada. Ora, como elas se formam? Formam-se por meio da chamada “dupla articulação”, isto é, por infinitas combinações dos “fonemas” – que, em italiano, são as 21 letras do alfabeto.

Os “fonemas” são, pois, as “unidades mínimas” da língua escrita-falada. Se quisermos nos divertir definindo a unidade mínima da língua do futebol, podemos dizer: “Um homem que usa os pés para chutar uma bola”. Aí está a unidade mínima, o “podema” (para continuar a brincadeira). As infinitas possibilidades de combinação dos “podemas” formam as “palavras futebolísticas”; e o conjunto das “palavras futebolísticas” constitui um discurso, regulado por normas sintáticas precisas.

Os “podemas” são 22 (mais ou menos como os fonemas): as “palavras futebolísticas” são potencialmente infinitas, porque infinitas são as possibilidades de combinação dos “podemas” (o que, em termos práticos, equivale aos passes de bola entre os jogadores); a sintaxe se exprime na “partida”, que é um verdadeiro discurso dramático. Os cifradores dessa linguagem são os jogadores; nós, nas arquibancadas, somos os decifradores: em comum, possuímos um código.

Quem não conhece o código do futebol não entende o “significado” das suas palavras (os passes) nem o sentido do seu discurso (um conjunto de passes).

Não sou nem Roland Barthes nem Greimas, mas, como diletante, se quisesse, poderia escrever um ensaio sobre a “língua do futebol” bem mais convincente do que este artigo. Aliás, penso que se poderia escrever um belo ensaio intitulado “Propp [3] aplicado ao ludopédio”, já que, sem dúvida, como qualquer língua, o futebol tem seu momento puramente “instrumental”, regulado pelo código de forma rígida e abstrata, e o seu momento “expressivo”. Há pouco, disse que toda língua se articula em várias sublínguas, cada qual com um subcódigo.

Pois bem, do mesmo modo, com a língua do futebol é possível fazer distinções desse tipo: o futebol também possui subcódigos, na medida em que, de puramente instrumental, se torna expressivo.

Há futebol cuja linguagem é fundamentalmente prosaica e outros cuja linguagem é poética. Para explicar melhor minha tese, darei – antecipando as conclusões – alguns exemplos: Bulgarelli joga um futebol de prosa, é um “prosador realista”; Riva joga um futebol de poesia, é um “poeta realista”. Corso [4] joga um futebol de poesia, mas não é um “poeta realista”: é um poeta meio “maldito”, extravagante.

Rivera joga um futebol de prosa: mas sua prosa é poética, de “elzevir”. Também Mazzola [5] é um prosador elegante e poderia até escrever no Corriere della Sera, mas é mais poeta que Rivera: de vez em quando ele interrompe a prosa e inventa, de repente, dois versos fulgurantes.

Note-se que não faço distinção de valor entre a prosa e a poesia; minha distinção é puramente técnica. Entretanto nos entendamos. A literatura italiana, sobretudo a mais recente, é a literatura dos “elzevires”: os escritores são elegantes e, no limite, estetizantes; a substância é quase sempre conservadora e meio provinciana... Em suma, democrata-cristã. Todas as linguagens faladas em um país, mesmo as mais especializadas e espinhosas, têm um terreno comum, que é a cultura desse país: sua atualidade histórica.

Assim, justamente por razões de cultura e de história, o futebol de alguns povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou estetizante (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de outros povos é fundamentalmente de poesia.

Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de gol. Cada gol é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada gol é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O artilheiro de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. Neste momento, Savoldi [6] é o melhor poeta. O futebol que exprime mais gols é o mais poético.

O drible é também em essência poético (embora nem sempre, como a ação do gol). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado por cada espectador) é partir da metade do campo, driblar os adversários e marcar. Se, dentro dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no futebol, trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado por Franco Franchi [7] nos Mágicos da bola, o qual, apesar do nível tosco, conseguiu ser onírico à perfeição).

Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gols? Os brasileiros. Portanto, o futebol deles é um futebol de poesia – e, de fato, está todo centrado no drible e no gol. A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é, no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código. O seu único momento poético é o contra-ataque seguido do gol (que, como vimos, é necessariamente poético). Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o momento individual (drible e gol; ou passe inspirado).

O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o gol é confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código (nisso Rivera é perfeito, apesar de Brera não gostar porque se trata de uma perfeição meio estetizante, não realista, como a dos meio-campistas ingleses ou alemães).

O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é esnobada em nome da “prosa coletiva”): nele, o gol pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira.

[1] Antonio Ghirelli (1922), jornalista e porta-voz do futuro presidente italiano Alessandro Portini; e Gianni Brera (1919-1992), jornalista esportivo. [N. do E.]
[2] Carlo Emilio Gadda (1893-1973), escritor; e Gianfranco Contini (1912-1990), crítico literário. [N. do E.]
[3] Vladimir Propp (1895-1970), crítico estruturalista russo que analisou as narrativas populares. [N. do E.]
[4] Giacomo Bulgarelli (1940-2009), meio-campista; Luigi Riva (1944), atacante; e Mario Corso (1941), armador. [N. do E.]
[5] Gianni Rivera (1943), meio-campista; Sandro Mazzola (1942), atacante. [N. do E.]
[6] Giuseppe Savoldi (1947), atacante italiano. [N. do E.]
[7] Franco Franchi (1922-1992), um dos principais nomes do cinema cômico italiano. [N. do E.]