para o Carlinhos
vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas imberbes e brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor.
(música de
Bach ao fundo)
ROBERTO PIVA em "20 poemas com brócoli" (1981)
"Anotações para um apocalipse"
A Fera voltará, com seu rosto de tranças de prata, nua sobre o mundo. A Fera voltará, metálica na convulsão das tempestades, musgosa como a noite dos vasos sanguíneos, fria como o pânico das areias menstruadas e a cegueira fixa contra um relógio antigo. Um sonho assírio, eis nossa dimensão. Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos e esmagando os brônquios da memória – assim se solidificarão as vertigens jogadas sobre a lama divina. O incesto é uma tempestade de luas gelatinosas e a mais bela aspiração dos membros dissociados. Em cada órbita uma avalanche de sinos férteis e de arcanjos terrificados pela sombra. O incesto é o sonho de uma matriz convulsiva e o mais profundo anseio das cigarras. Vaginas de cimento armado e urnas sangrentas, impassíveis contra um céu de veludo, guardiãs de oceanos impossíveis. Milhões de lâminas servem de ponte para os desejos obscuros – a mais afilada trará a nossa Verdade.
CLÁUDIO WILLER, em "Anotações para um apocalipse" (1964)
"Paisagem"
(- Ryder)
para M. Afonso
Verás cor de vinho a nuvem
E sob a nuvem
A bandeira cravada junto ao precipício
Aqui é a floresta de Arden:
Esporeando
O corcel branco
Ele guinchou-se aos céus
Numa curva Real
RODRIGO DE HARO, em "A Taça estendida" (1968)
"Profissão de má fé"
Os poemas devem ser gordos
e ter penas
como os frangos
os frangos úmidos dos quintais
os belos frangos
que ciscam o chão &
bicam os pés de urtiga
rasgado o peito
está o coração
pobre balão
sangue suor e nostalgia
amar é passar o dedo
numa agulha de vitrola
as poças d'água
as flores ásperas
os poemas frouxos
cordas soltas de celo
esse som
que vem de dentro
soprado pela boca indizível
que tentamos saber
que tentamos traduzir
essa onomatopéia delirante
que nos obriga a dizer
Eu te amo
quando queremos sussurrar
Ben Close dinamite &
sempre teus lábios matam.
ROBERTO BICELLI, em "Antes que eu me esqueça" (1976)
"Circo Máximo"
Leões incontidos
tangenciam os varais
sou a carne exposta
no festim impuro
promessas de meu ventre
em seus dentes duros
no sangue imolado
de rompidas veias
me parto hóstia fendida
me derramo na areia
eu matéria consentida
desta rude ceia
ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI, em "Tarde Revelada" (1987)