Saiu na Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada de hoje, um artigo dos bons assinado pelo Marcelo Coelho. Ele fala sobre "Os Dentes da Memória - Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e Uma Trajetória Paulista de Poesia", meu livro com Camila Hungria pela Azougue Editorial. Os sites das livrarias Martins Fontes e Cultura enviam para todo o Brasil, basta comprar com eles.
Abaixo, reproduzo texto e trecho da edição digital do jornal, cortesias de Bê Neviani e Keka Ferreira. Gostei muito do espírito do texto, que é também parte do espírito do livro. Acho que o Piva estaria se divertindo bastante com isso. Willer, Bicelli, Franceschi e outros personagens estão curtindo.
MARCELO COELHO
Sexo, bombas e choque elétrico
Sexo, bombas e choque elétrico
"A gente se beijava e corria uma eletricidade incrível [...] Nós estávamos tomando choque molhados!" |
Existem os loucos e existem também aqueles que querem ser loucos sem serem loucos de fato.
Qualquer que seja o caso, não faltaram loucuras na vida do poeta Roberto Piva (1937-2010) e dos seus amigos (Cláudio Willer, Rodrigo de Haro, Roberto Bicelli). Alguns exemplos.
Na década de 70, Piva e Bicelli davam aulas num colégio público. "Um dia", conta Bicelli, "o Piva chegou atrasado porque ficou bebendo com a professora de geografia. Entrou bêbado na classe, fez a chamada e falou: 'Estou de saco cheio do bom comportamento de vocês'".
Ato contínuo, "subiu na mesa, baixou as calças e mostrou a pica para os garotos da quinta série! Ainda correu atrás de um japonesinho que havia se mandado da sala! A inspetora, que era nosso anjinho, transferiu-o de escola e ficou tudo bem".
O caso é lembrado em "Os Dentes da Memória", livro de Camila Hungria e Renata D'Elia, que acaba de ser lançado pela Azougue Editorial.
Acompanhado por uma breve antologia desses poetas (a geração dos "novíssimos" da década de 60), o livro é composto exclusivamente dos depoimentos, habilmente entrelaçados, dos principais membros do grupo.
Cláudio Willer é o protagonista de outra aventura.
"Eu e um amigo pretendíamos explodir uma bomba na casa de um desafeto nosso, na rua Tupi com a avenida Pacaembu. Então, prendemos a bomba com pólvora enrolada em fita adesiva. Quando fomos testar a bomba, esse meu amigo teve a genial ideia de enfiá-la no escapamento do carro e acender!"
Enquanto a bomba não estourava, continua Willer, "resolvi brincar com uma pistola Browning 7.65, que tinha ganhado de presente num breve período de gostar de armas. Ficamos tentando acertar os lampiões e a iluminação da Pacaembu!".
Erraram todos os tiros, mas a polícia apareceu. "Quando chegou a polícia, a bomba do carro explodiu!" Novamente, nada mais sério aconteceu. "Depois demos uma grana para o delegado sumir com as provas, e fui inocentado perante o juiz."
Já Roberto Bicelli se lembra de uma transa incomum. "Fui ao banheiro, passando meio mal. Lá, peguei a minha namorada e dei um cato nela. A gente se beijava e corria uma eletricidade que era uma coisa incrível! A gentia sentia choques pelo corpo todo."
Não era paixão. "Quando percebi, a pia tinha quebrado fragorosamente e tinha um fio solto no chão! Nós estávamos tomando choque molhados!"
Choques elétricos, bombas caseiras, subversão estudantil: nesses episódios, é como se tivéssemos a história da ditadura militar traduzida em outros termos, transportada numa viagem de LSD.
No começo da década de 60, o grupo de Roberto Piva tratava de romper com o formalismo vigente e seguir, nos moldes dos surrealistas e dos beatniks, a ideia de que não pode haver separação entre a arte e a vida.
As fotos reproduzidas no livro, assim como o documentário de Ugo Giorgetti sobre o grupo ("Uma Outra Cidade", de 2001), não deixam dúvidas. Roberto Piva, na juventude, era bonito a mais não poder, e seus amigos não ficavam muito atrás.
Álcool, drogas e o passar do tempo foram minando essa beleza. A partir do AI-5, as bombas e pistolas já não podiam ser usadas com tanta impunidade. A transgressão foi sendo abandonada por alguns dos membros do grupo, que casaram, tiveram filhos e arranjaram emprego.
A heterossexualidade pode ser uma vigorosa fonte de caretice. Roberto Piva não conheceu essa ameaça.
Se escapou, na época, de ser preso ou internado por homossexualidade, hoje seria provavelmente acusado de pedofilia. No fim da vida, contou-me que alguns dos seus amantes adolescentes tornaram-se, com o tempo, bons amigos heterossexuais. Piva chegou a ser padrinho do filho de um deles.
O artigo vai acabando e não tenho espaço para comentar a poesia dessa geração. Mas, afinal, quando se rompem as fronteiras entre vida e literatura, os lances biográficos desses poetas ganham seu próprio interesse estético.
Por outro lado, na medida em que se entrega ao fluxo das associações livres, à "paranoia" e ao "delírio", essa poesia corre o risco de se tornar monótona. A loucura funciona quando feita de flashes e inspirações súbitas; mas é difícil sustentá-la para sempre. Isso exige muito voluntarismo e militância.
Como se sabe, as décadas de 60 e 70 estavam aí para isso mesmo.
coelhofsp@uol.com.br
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