Foi uma manhã difícil de um dia atípico aquela, em março de 2005. Acordei cedo, num impulso automático, pois não conseguia pensar há vários meses desde que um aspirador de pó fora ligado próximo aos meus ouvidos e passado a sugar todas as minhas vontades. Caminhei opaca e nula pelas ruas do bairro chique, comprimentei porteiro, faxineira e outros irmãos invisíveis, entrei no elevador e subi. Era um emprego ruim. Ganhava-se mal, fingia-se mal, levava-se coices de cavalos & burros 8 horas por dia. Mas só até aquele dia. O último. O dia em que pedi licença, e depois outra licença, e depois mais uma, até que, num sentido figurado, obrei no meu pinico cor-de-rosa em cima da mesa da sala de reuniões. Caguei. Caguei pra vocês. Tchau.
Meu coração havia voltado a bater. Meus olhos voltaram a piscar, e então comprei umas meias coloridas na liquidação da loja, um misto-quente com coca-cola no bar da esquina, observei umas mulheres com sardas -- eu acho bonito ter sardas -- e senti que os dedos do homem do caixa tocaram os meus por mais de dois segundo ao pagar a conta; por isso mirei seus olhos enquanto entregava-lhe as cédulas sujas, e depois continuei a caminhar. Pisava em nuvens calçando tênis velhos. Imaginei canções. E imaginei canções tão alto que comecei a cantá-las baixo, para não espantar as pessoas no ponto de ônibus. Eu já estava apaixonada por você e havia adquirido o hábito de observar as placas dos dos ônibus para saber se passavam pela sua casa. Eu gostaria muito de ter ido à sua casa.
Não sei o porquê, mas desisti dos ônibus. Lembrei de quando cabulava aulas e dormia com a cabeça batendo nas janelas embaçadas até os pontos-finais, passando por baixo das catracas pra poder gastar o dinheiro da passagem em misto-quente e coca-cola. Lembrei também que nunca havia pisado em sua casa e que não pegaria bem simplesmente tocar a campainha e dizer: "Oi, tudo bem? Eu estava passando por aqui e resolvi te procurar porque é fim de verão. Queria te contar o que aconteceu. E também quero te abraçar. Acho que nunca quis tanto uma coisa na vida". Entrava em euforia cruzando avenidas, sentia carros e pedestres passarem como flashes -- os cachorros vagabundos até pareciam bem nutridos -- e, respirando 60 vezes por minuto, decidi então adentrar a galeria.
Era Mapplethorpe. Entre nós, não havia cores, mas também não havia ninguém. Havia um auto-retrato de um homem de olhos verdes [os falos e flores eu vi depois]. Havia Iggy Pop estrábico. Schwarzenegger de olhos tímidos. Havia Nova York num buraco negro irresistível. Havia também umas putas feias que eram plasticamente incríveis. Havia uma mulher que parecia Caroline Herrera, e era Carolina Herrera. Em Nova York não havia sol. Nem fim de verão. Nem letreiros de ônibus e abraços imaginários. Só Philip Glass & Robert Wilson de pernas cruzadas. Patti Smith descabelada. Havia um rasgo punk na garganta [mas eu não podia gritar]. Havia fogo no gelo. Então, éramos cúmplices. Em Mapplethorpe havia paixão.
ROBERT MAPPLETHORPE
Quando: dede ontem, até 20 de junho. ter. a sex., 10h às 19h; sáb., 10h às 17h
Onde: Galeria Fortes Vilaça (r. Fradique Coutinho, 1.500, tel. 0/xx/11/ 3032-7066; classificação: livre)
Quanto: entrada franca
2 comentários:
Um brinde à volta da caixa de comentários da D'Elia!
uhuuuuuuu!
Sem tesão não funciona! Não se imagina nada, e engorda. Dá cancer.
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