domingo, 22 de julho de 2007

Relíquia Machadiana

Gostei da brincadeira. Agora vou tirar o pó da gaveta. De vez em quando vou publicar aqui resenhas antigas sobre livros, filmes e registros musicais já lançados há algum tempo. Vale até produção para a faculdade. Custa nada tentar.

Relíquia Machadiana
As controvérsias talvez girem em torno de seu nome em comparação ao de João Guimarães Rosa. Mas Machado de Assis é ainda considerado o maior escritor de língua portuguesa do Brasil, em todos os tempos. Trata-se do único autor brasileiro a receber críticas atemporais de relevância internacional e ser reconhecido como grande romancista em comparação aos contemporâneos europeus. Machado é um dos poucos a escapar da pecha do “exótico” a olhos estrangeiros.

Inicialmente influenciado pelo Romantismo, até promover uma virada radical para o Realismo com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de 1880, Machado é primordialmente lembrado como o romancista criador da personagem mais instigante da literatura brasileira, a Capitu, de “Dom Casmurro, lançado em 1900 – o livro brasileiro mais traduzido para outros idiomas. No entanto, era ele também um respeitado crítico literário e tradutor de obras como “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. Lançou sete livros de contos, que ficaram à sombra da fama dos romances, embora tenham sido também objetos de estudo ao longo de mais de cem anos.

Em 1906, dois anos antes de sua morte, foi publicado “Relíquias da Casa Velha”, seu último volume de contos. “Pai Contra Mãe”, o conto de abertura do livro, revela o olhar minucioso de Machado, que mesmo doente, exercitava na pequena estória o talento de observador perspicaz. Eram os primeiros anos após a abolição dos escravos, e à chegada da República. Não foge ao autor portanto a menção àquele Rio de Janeiro novo e estranho, através da memória sobre o passado.

Machado utiliza uma narrativa em terceira pessoa sobre as fugas dos escravos em tempos de império, as formas de prendê-los e marcá-los a ferro para evitar reincidências. Isso para chegar até a história de Cândido Neves, que inadequado aos empregos fixos dos tempos de Império, virou um hábil catador de escravos fujões. Enamorado e casado com a costureira Clara, tornou-se alvo dos comentários alheios por não levar dinheiro à casa todo dia. Substituído por homens mais ágeis, Candinho ficou sem ofício, e sem dinheiro. Despejado, o casal que esperava um filho,levava conselhos de dar a criança.Tia Mônica, com quem Clara vivera antes de casar-se, era quem os dava moradia de favor, e quem tomou partido de tirar o menino daquela miséria.

A forma machadiana de esmiuçar problemas sócio-econômicos ainda contemporâneos é singela e precisa. Trata-se de uma reflexão sobre os marginalizados, como Candinho, que não tinha respeito nem sustento, por não se adequar à sociedade. Uma pessoa a quem não sobra alternativa, quando sim, um pingo de inventividade, ou de esperança. O ciclo da miséria humana é fechado por Machado em volta do ofício de Candinho – que capturava gente que fugia em direção à liberdade. È neste ofício, ao tentar capturar uma negra, que Candinho baseia sua última esperança em não dar o filho.

A rede de contradições da trama é social, política e moral – ainda que a narrativa se conserve simples e objetiva. Ao capturar a escrava, Candinho lhe ouve suplicar a liberdade, com o pretexto de estar grávida. Sua forma de verter as próprias agruras sobre os outros é recriminá-la, como que simbolizando o ciclo de perversidades de uma sociedade de dominados e dominadores, de vítimas e aproveitadores, mesmo que nem tudo seja tão maniqueísta assim.

Ainda que existam ações físicas e que sejam descritos sentimentos como fúria, ou mesmo a força física de um ou outro, Machado constrói uma narrativa psicológica, como de costume. E denuncia a barbárie, como se tivesse forma de fábula. Nela, seres humanos sujeitam as mais duras decisões de suas vidas a um efêmero e irresponsável jogo de poder e dinheiro. Características opostas como ternura e raiva, e posições contrárias como a de aproveitador e aproveitado, enriquecem, numa breve história, o perfil do personagem principal. Ninguém é completamente herói ou vilão. Não há simplismo em Machado de Assis.

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