quarta-feira, 12 de maio de 2010

Bichos escrotos, saiam dos esgotos: a cultura higienista na zona norte da cidade

Eu moro no Jaçanã. De verdade, que nem o personagem da música. Venho de uma família de classe média-baixa, descendo de italianos e portugueses que, quando nasci e conforme cresci, já estavam melhorzinhos na vida com base naquela coisa chamada trabalho. Sou filha de um clichê paulistano muito simpático e, se eu perder este trem -- que sai agora às 11 horas -- só amanhã de manhã.

Minha casa fica 2 quilômetros antes da divisa com Guarulhos, onde existe uma ponte que direciona carros à Rodovia Fernão Dias, que é cercada por acostamentos perigosos, depósitos de construção, ferros-velhos, casas de classe média-baixa e motéis. Vizinha da ponte é um córrego imundo, além de uma favelinha boca quente. Debaixo da ponte moram mendigos, viciados em crack e gente levada pelas piores sortes do mundo. Metros depois da ponte, fica um Habib´s 24 horas onde funciona um animado playrgound infantil.

Esta semana, debaixo da ponte, ao lado do córrego, em frente à favela, metros antes do Habib´s 24 horas, 6 moradores de rua foram assassinados a sangue frio durante as horas geladas da madrugada. O bairro vive uma onda de violência. And there´s no such thing as paranoia, já diria Hunter S. Thompson, praticamente uma antítese americana do Jaçanã. Pesquisa do Datafolha, realizada em 2009, aponta que este é um dos distritos com maior índice de violência na cidade, mas embora 34% de seus habitantes afirmem já ter sofrido com isso, apenas 26% tem a sensação de viver em um lugar perigoso. Bem, eu disse que o Jaçanã era um bairro simpático.

Nós, zonanorteños, assim como os porteños, somos facilmente reconhecíveis. Cumprimentamos uns aos outros com tapas nas costas -- inclusive mulheres grávidas --, falamos um dialeto que mistura "bella roba" com "certo, mano" e, mesmo que não suportemos pagode e nos mudemos para qualquer reduto modernoso da cidade, ainda seremos obrigados a almoçar em "churrascarias chiques" no Dia dos Pais ou frequentar o aniversário de um amigo de infância que toca pagode e faz reflexo no cabelo.

Aprendemos, desde pequenos, que Santana é o melhor bairro do mundo e que é bonito ser uma emergente emperuada que ocupa duas vagas no estacionamendo do shopping. Um bom emergente da zona norte paga, na Parada Inglesa, o mesmo que se paga pelo metro quadrado dos Jardins e tá tudo bacana: é muito importane viver num bairro de família próximo do metrô. Afinal de contas, moramos perto da Serra da Cantareira e respiramos fumaças mais puras que as fumaças da zona sul.

Não menos importantes são os dados políticos. Entre os zonanorteños, pega muito mal ser de esquerda: não existe uma família cujas fotos oitentistas e noventistas não revelem um velho Opala branco com um adesivo do Maluf no vidro. O Jaçanense clássico -- de 20 a 70 anos --, é um exemplo vivo: quer ver a ROTA na rua e elege, invariavelmente, os mesmos patronos às câmaras municipais e estaduais. Gente como Wadih Mutran, Capitão Cosme e Conte Lopes. Sabe aquele seu tio gerente de banco? Então.

De janeiro a maio de 2010, tenho notado que o número de moradores de rua aumentou consideravelmente no Jaçanã. Já até vi uma criança dormir dentro de um caixa eletrônico do Itaú. Limpeza pública é coisa do passado: as calçadas estão imundas e os vira-latas de rua estão muito felizes com isso. O bairro é mal iluminado e as opções de lazer são escassas, o que me força a pagar táxis caros para sair ou chegar após as 10 da noite. Os pedidos de esmola no meu portão também aumentaram, a qualquer hora do dia. Outro dia perguntei a um taxista se no portão dele também era assim. Ele disse que essa cambada de vagabundos devia parar de usar tóxico e arrumar outro lugar pra dormir.

Imagino que o taxista, que é pai da menina da Lotérica, acredite que o adolescente deitado no caixa eletrônico tenha grandes chances de estudar, sei lá, em Harvard; e estaria simplesmente desperdiçando uma grande vida em prol da vagabundice e da sujeira. Mas concordo em partes: era mesmo mais cômodo quando todos eles dormiam nos albergues, longe das nossas calçadas. Vocês não acham? Quanto a isso, lhe fiz uma proposta: que tal culparmos nosso neo-malufista de confiança, o Kassab, que fechou uma tonelada de albergues e, pra piorar, é dono de uma administração medíocre em assistência social e educação?

Mas o taxista, como um zonanorteño clássico, acha que o negócio é só pagar bem a polícia e investir em presídios de segurança máxima. Há mais de 20 anos no estado de São Paulo é assim: construímos cadeias e mais cadeias e, de vez em quando, rola um massacre de presidiários. Não à toa, os índices de violência em todo o estado voltaram a crescer. Digo ao taxista que isso não vai dar em nada pois, daqui a pouco, metade da população estará na cadeia e a outra metade estará trabalhando pra sustentar os presos. Mas antes que ele falasse em pena de morte, cruzei a divisa com Guarulhos rumo à casa da minha mãe, e observei a ponte escura com uma constatação óbvia: é assim que as cidades marginalizam as periferias, até que as periferias apodreçam a cidade.

-- "Moço, é o seguinte: de bate-pronto, eu diria que o sistema carcerário paulista é mais falido que o SUS e menos falido que a educação estadual. Ligue os pontos", eu disse.

O taxista ralhou, me chamou de Petista e tomou de mim os 40 contos da corrida.

* Nos tempos do Governo Covas, um pedaço da ponte erguida sobre o córrego desmoronou durante uma tempestade, prejudicando todo o trânsito e o urbanismo da região. Foram mais de 2 anos até que as prefeituras e o governo tomassem uma providência.
** Segundo estatísticas oficiais, o maior número de chacinas da capital nos últimos 2 anos aconteceu na zona norte.
*** Em 2008, o assassinato de um coronel da PM na Av. Engenheiro Caetano Alvares ganhou as manchetes noticiosas. A Academia de Polícia Militar do Barro Branco também fica na zona norte.



Peça de Museu. Todo zonanorteño, além de provinciano, é orgulhoso. Nós somos assim.

5 comentários:

Unknown disse...

gostei do seu texto , identidade dos bairros , a morte dos mendigos foi lamentável , cruel demais

Diego M. Fernandes disse...

Pois é, mas tenho a impressão que não muda muito pro resto da cidade, no que diz respeito a áreas em que moram gente de uma classe social semelhante.
O triste é ver que não muda nunca, o menino já cresce ouvindo que tem que por a ROTA na rua e que o mendigo é um vagabundo sujo que não quer trabalhar.

Aline disse...

E isso aí que eu queria ler, bonitona, mandou bem. Como eu disse hoje, esse Kassab é mesmo um gênio: http://tinyurl.com/yh2f9k9 tá que a notícia é velha, mas pelo que ouvi por aí e pelo que vc acabou de constatar, a palhaçada já chegou na ZN! E viva os higienistas de plantão...continuem achando que morador de rua é caso de polícia... ô cabeçinha viu.

Leninha disse...

Muito se fala e se reclama da situação dos moradores de rua marginalizados. São um prato cheio para os políticos em geral desenvolverem propostas de governo sem consistência nenhuma, q que todos sabem que não serão colocadas em prática. Não são tomadas nem medidas a curto prazo e nem a longo prazo. Não se melhora as condições de trabalho dos policiais, a justiça continua morosa, a educação está cada vez mais ridícula, há vagas de emprego, mas falta qualificação aos profissionais. O colapso é generalizado.

Camila S. disse...

Há tempos não freqüento os reônditos do Jaça (coisas da vida), mas sempre tinha a impressão de estar em outra cidade, praticamente uma cidade do interior.