sábado, 20 de junho de 2009

O diploma e os heróis do mar

17 de junho de 2009, 19 horas. Eu estava naufragada, barbuda e agarrada a uma bola de vôlei chamada Wilson, quando escutei a voz profética que não me salvou:

- "Puta que o pariu, Renata! Caiu a obrigatoriedade do diploma! Depois de tudo que a gente passou! 4 anos, muito dinheiro, muita encheção de saco. Tudo bem, o TCC valeu. Mas tirando você, essa faculdade não serviu nem pra fazer amigos", disse a menina Húngara de RayBan. Só mais uma estagiária contando as moedas pro busão depois de fazer o que um repórter formado deveria fazer, só que ganhando 1/3 do piso salarial, que pelo jeito, acaba de ir completamente prás cucuias.

Ou esta porcaria de classe (o "amontoado") vai finalmente se unir pra lutar contra a precarização total do trabalho de seus jornalistas, sejam eles diplomados ou não?

Começaram os protestos. Ontem mesmo, na Avenida Paulista, foram vistas centenas de focas ameaçadas em extinção. Dizem que elas pareciam alcoolizadas e usavam camisetas vermelhas com a inscrição da palavra JUCA. Uma equipe de peritos está catalogando os exemplares, pois é provável que elas se atropelem pelas correntes marítimas. [Notou-se a presença relâmpago de uma foca sênior bastante rara, modelo apostrofado, que atende pelas iniciais R.D. Minutos depois, ela desapareceu].

Confesso que, do jeito que foi feito, me assustou um pouco. E olha que nunca achei que alguém precisasse fazer faculdade para escrever pirâmides invertidas. Vai além quem tem talento e bom nariz para farejar histórias mal contadas & pontas soltas tão obsessivamente a ponto de fazer uma puta reportagem. Ou várias dessas. Daquelas que eu lia quando era pequena e que me davam vontade de ser como eles. E pra mim, eles eram desbravadores. Heróis do mar.

Parecia mágico. Mas nada como um ponto de vista. Para vossa excelência Gilmar Mendes, tudo isso é como... cozinhar!

Sempre achei que sociólogos, historiadores, botânicos e até bombeiros poderiam coexistir a jornalistas graduados nas redações. Equipes multidisciplinares. Contudo, acho errado desmerecer o papel das faculdades de comunicação. Todas elas vão ter que se mexer. Mas onde eu arrumaria tempo, motivo e AMPARO para realizar um projeto pessoal de reportagem em profundidade, aos 24 anos? Só foi viável como trabalho de conclusão de curso - uma puta experiência -, que ainda por cima virou livro. Agora é justo que cada um procure a qualificação que julgar melhor para si e que as empresas decidam como querem compor seus quadros funcionais. Contanto que não vigore a prática - e a leviana ideia - do "qualquer um faz".

No plano do jornalismo analítico e opinativo basta lembrar que, em maior parte, o time da maioria dos jornais vem de outras formações. E que nenhum jornalistinha "despolitizado, formado nesse curso limitado e burro"(segundo a simplista & preconceituosa visão que acabo de ouvir de um estudante de História), vai tirar um Doutor Political Sciences de lá. Mas afinal, as divisões de mundo sempre foram classistas, não? E agora zombam de nós aqueles que nos consideram uma casta inferior. Vai ver acreditam que fariam melhor uso do pseudo-poder fomentador da esfera pública. Coitados.

Algumas coisas me incomodam. O terrível hábito de esculhambar, por exemplo. "Profissãozinha de merda, não precisa nem de diploma pra fazer isso aí!" Não me culpem pela resposta grosseira depois dessa. É claro que tem muita gente limitada, e faz-se um jornalismo limitado por aí, mas vamos combinar que os nossos patrões têm uma bela de uma culpa no cartório. E se alguém pode tirar um sarro disso aqui somos nós, como já fiz no texto abaixo sobre as famosas pirâmides invertidas.

Alguns argumentos parecem piada. Como a dúzia de músicos que acham que eles é que deveriam escrever sobre música e não quem não "entende" do riscado. Mas escrever que é bom, com precisão e qualidade para diversos públicos -- não só pra eles --, pouquíssimos fazem. E ainda por cima desprezam o conhecimento dos outros. Músicos desprezando ouvidos? Soa mal. Vindo de uma classe aberta, porém regulamentada por um conselho do qual participam tanto guitarristas autodidatas quanto maestros & doutores, me parece um tiro no pé. Ou vão querer fazer divisão classista & reserva de mercado na OMB, "só entra bacharel"?

Existem ainda os apocalípticos. Comemoram a vitória nessa pseudo-guerrilha ideológica que mistura conceitos democráticos com a banalização da profissão alheia. Para eles, o fim do diploma enterra o jornalismo que, afinal, já se tornou desnecessário na era dessa imensa praia de nudismo open bar chamada "convergência digital". [Nada contra praias de nudismos, que fique claro]. O problema é vulgarizar. Na farra dos reducionistas, pra ser jornalista ninguém precisa sair da ilha. Basta apurar de qualquer jeito e sair falando o que quiser.

Mas e então, vamos morrer na praia? Juntinhos, de mãos dadas, sem função, jogados às traças? Desvalorizados pela inteligentsia much more able to do it? Desvalorizados por nós mesmos?

O medo é a desprofissionalização. E também o fato de não ter quem banque investigações. Alguém precisa discutir a "pobreza" de informações. E fora isso, não faz muito sentido ser contratado pra apurar matéria no Google. Pra que chamar de imprensa uma massa de gente que traduz às pressas os textos da Reuters que serão igualmente reproduzidos em todos os sites noticiosos ao mesmo tempo, com a mesma foto? O que muda são os erros de orotografia. E ninguém precisa de diploma pra isso.

Algum orgulho, apesar de tudo. Aquela cabeça de bronze do Cásper. Corredores abafados. Algumas paixões. Uma considerável patota de bêbados que já me acompanharam. Colegas malas, porém felizes. Professores & trejeitos. E a meia dúzia de amigos que vai restar. Mesmo que me sinta desperdiçada por uma grade curricular inflexível. Time for change, diria Obama. Espero que não façam lambança com as disciplinas técnicas. Nem com nossos órgãos laboratoriais. E que não sumam do mapa com a História, a Ciência Políica, a Antropologia. Que tratem as nossas futuras focas com muito amor e carinho, pois elas estão mais carentes do que nunca.

Por isso me despeço insone, pendurada nessa bola Wilson. Mas não sou reserva de mercado não. E nunca fui.

Aproveito e mando mensagens em garrafas ao mar. Abraços a quem encontrar.

RENATA D´ELIA, jornalista desde sempre.

Um comentário:

Lena Dib disse...

Colega, os 4 anos nao foram a toa. Eu paguei pelas aulas (as do Wellington, LM e Petta valeram ao menos), nao paguei pelo diploma. E até o Talese acha q nao é necessario o diploma. Nao é necessario na maioria dos países até mais serios q o nosso. A maioria das profissoes tb nao exige diplomas - economistas, administradores, publicitarios, designers, nada disso. Mas nem por isso as faculdades deixaram de existir e diplomas foram rasgados. Ao menos com meia duzia de aulas e um TCC aprendesse mto e acredito q continuarão a levar isso em conta.