sábado, 27 de junho de 2009

Crianças caminham na lua (cronologia comentada)

1987: Renata D´Elia tem 3 anos. É apenas uma cabecinha loira maçarocada que tem medo de dormir sozinha porque acha que Michael Jackson vai vir lhe pegar. Ele é o zumbi do clipe que, anos mais tarde, ela vai considerar como o melhor de todos os tempos. Esperta, sua tia Vilda utiliza Thriller para chantageá-la: "cala a boca e vai dormir se não o Maicon Jéckison vem te pegar!" Para o mundo, o cantor é Deus e lança o álbum Bad. Ele programa a primeira de uma série de turnês tão monstruosas - e incríveis - quanto os monstros de Thriller.

1990: O Brasil perde a Copa nas oitavas de final para a Argentina. Renata é uma criança loira e banguela, que vai para a escola de ônibus escolar de segunda à sexta religiosamente às 12:15 e chega em casa às 18:40. Numa casa de veraneio em Ubatuba, tia Vilda brinca de esconde-esconde, e decide pregar uma peça nas sobrinhas - Fernanda tinha 3 anos -, uma verdadeira covardia: mandou que as duas fossem bater cara juntas (era autoritária) e, causando pavor, surgiu do escuro imitando um monstro e dizendo que era Michael Jackson. Fernanda nunca mais se recuperou do trauma.

1991: A mãe de Renata a leva ao cinema para assistir Esqueceram de Mim. O ator mirim Macauley Culkin é um dos primeiros fetiches que brotam naquela cabeça loira maçarocada. Michael Jackson lança o álbum Dangerous. O Brasil pára diante da TV para assistir a estreia de Black Or White, o primeiro clipe do disco. Renata não entende aquilo muito bem, mas adora os efeitos especiais, sai cantando a música errado em inglês, além de seguir achando o Macauley Culkin muito legal. Ele aparece no clipe.

1992: Os meninos do vôlei ganham a medalha de ouro na Olimpíada de Barcelona. Tia Vilda escuta Michael Jackson. E Madonna. E trilhas sonoras internacionais de novelas. Assiste, diariamente, a um extinto programa de videoclipes da TV Gazeta, o Clip Trip. Estreia um novo clipe de Michael Jackson: tem Magic Johnson e uma modelo negra que, anos mais tarde, Renata vai achar cool, já que ela é casada com David Bowie. Remember The Time se passa no Egito. Renata adora História e acha o Egito muito legal.



1993, outubro: Sentiu endurecer o corpo e de repente acelerar o coração. Era como se um raio tivesse lhe atingido devagar. Era um fascínio, uma espécie de transe, uma atração irresistível diante de incomensurável fulgor. Alguns meses antes, Renata havia sido atacada por uma multidão de piolhos e sua mãe mandara-lhe cortar seus cabelos bem curtos. Isso dificultava um pouco seu raciocínio, e por isso, ela não conseguia entender. Michael Jackson está no Brasil. Michael Jackson está no Playcenter. Michael Jackson está no palco e o planeta gira em torno dele. Renata acompanha cada detalhe pela TV. As crianças na escola imitam o moonwalk. Renata voa pela janela, com o movimento das cortinas. Ela não tira o pensamento dele.

1993, outubro, parte 2: Renata não está bem. Ou está. Ela não está como antes. Ela não consegue mais brincar com a lista do mercado, não sente mais o cheiro dos vidros de shampoo, nem faz questão de empurrar o carrinho. Está enfeitiçada. Não consegue tirar os olhos dos olhos castanhos no centro da capa de Dangerous, pela vitrine da loja de discos, no Hipermercado Eldorado do Shopping Center Norte. Renata adentra, pela primeira vez, uma loja de discos. E descobre que essas coisas têm cheiro. Custou 200 cruzeiros - vovó Grace que comprou.

1993, outubro, parte 3: O SBT anuncia "o show do século". É Michael Jackson. Renata pensa que é o show do Brasil. Renata mal consegue esperar. Renata mal consegue dormir! Pede para tia Vilda gravar. Vilda é uma pessoa métodica. Se programa para ocupar os dois videocassetes da casa e grava logo em duas fitas, uma delas para Renata*.

1993, outubro, parte 4: Hora do show. Renata sente, pela primeira vez os olhos marejados desde a morte do trapalhão Zacarias. Olhos fixos. Renata sente o coração disparar. Michael Jackson está no palco. Está na televisão. Está por toda a parte. As pessoas gritam. As pessoas choram, passam mal. Renata não consegue entender. Renata está paralisada. Michael Jackson também. Michael Jackson está de calças, sapatos e casaco preto brilhante, camiseta regata e meias grossas brancas, e esconde parte do rosto com um chapéu na batida indefectível, que dá lugar ao baixo, até que Michael comece a se mexer. Parece um príncipe. Michael Jackson é seu príncipe. Ele desliza pelo palco de costas, e para na ponta dos pés. É Billie Jean. Renata descobre a mágica. Michael Jackson é todo dela.



1993, outubro, parte 5: Michael Jackson e seus bailarinos desafiam a gravidade dançando Smooth Criminal. Renata tenta fazer a mesma coisa em casa. Bate a cabeça na quina do sofá e se espatifa no chão. Sua mãe é uma mulher muito séria e nessas horas diz apenas: "pára!".

1993, novembro: Renata D´Elia desenvolve sua primeira obsessão. Seu coração dispara a cada 10 segundos de Michael na TV. Com ajuda da tia Vilda, grava todas as aparições dele. Ela sabe tudo. Coleciona revistas. E passa a cometer pequenos delitos. Uma vez, no cabeleireiro, distraiu a própria mãe e as demais dondocas para arrancar uma página de revista com uma foto de meia página de Michael (na página de trás, estava Elvis Costello). A cena se repete em consultórios médicos e odontológicos, pelos próximos dois anos. Aos 9, a garota monta um esquema de contrabando de dinheiro do lanche junto da colega Ísis para comprar, escondida da vovó Grace, todas as revistas e pôsteres possíveis. A pequena delinquente mirim esconde as provas do crime no fundo da mochila escolar.

1993, dezembro: Ganha de presente o álbum Thriller. Adquire o hábito de ouvir música por horas e horas, a portas fechadas, e grava todas as canções de Michael Jackson que escuta no rádio. Numa dessas missões, ouve pela primeira vez Got To Be There (mas só deu pra gravar da metade pro fim). A partir dali, passa a sonhar acordada com frequência e decide seu rumo na vida: ser campeã olímpica de vôlei nas Olimpíadas de 2004, depois estudar jornalismo, e ainda se casar com Michael Jackson.

1994: Renata é monotemática. Só pensa naquilo. No Michael Jackson, é claro. Ganha de presente o álbum Bad e coletâneas dos Jackson 5. Também gosta de Madonna. Quer ser mais ou menos que nem ela, porém casada com o Michael. Ele é acusado de abuso sexual de menores. Renata se empenha em provar ao mundo que ele é inocente. [Ele é meu marido, pai dos meus 6 filhos, porra!]. À esta altura da pré-história, comprava papel vegetal de seu amigo desenhista, o Leandro, e copiava Michaels para depois personalizá-los: versão cabelo vermelho, com barba, óculos escuros ou óculos do Clark Kent.

1994, meados: Ganha o cartucho do videogame Moonwalker para o Master System III. Michael Jackson mata os inimigos com a força da gravidade e com um chapéu. O avô de Renata acha engraçado.

1994, maio: Michael Jackson se casa com Lisa Marie Presley. Renata se deprime. Mas segue comprando revistas. Passional, desenha bigodes em todas as fotos da algoz. E conta os dias para a separação do casal. A praga deu certo e eles se largaram pouco tempo depois. [Quem mandou mexer comigo, cachorra?]

1995: Renata ainda coleciona revistas. Ganha, finalmente, um Microsystem CCE com tocador de CD. Seu primeiro CD é Off The Wall, de Michael Jackson. O segundo é Greatest Hits I, do Queen. E depois Voodoo Lounge, dos Rolling Stones. O primeiro dos Doors. E uma coletânea de Elvis Presley (ela já perdoou Lisa Marie). O rock n´roll vai, aos poucos dominando sua vida. Enquanto isso, segue gravando clipes, incessantemente, por entre os chuviscos da MTV. Michael Jackson lança HIStory e faz uma apresentação emblemática no VMA´s. Renata assiste, ao vivo, de casa. E sonha com o admirável ano de 2009, grávida de Michael Jackson, entrevistando Mick Jagger para a MTV e assistindo a todos os shows legais do mundo.



1195, data desconhecida: Renata consegue o endereço da caixa postal do seu queridão pela seção de cartas da Revista Bizz. Um belo dia, coloca uma pequena escrivaninha na sala e, enquanto seus avós assistem à novela das 7, escreve uma carta de próprio punho em folha pautada de caderno e endereça a Michael Joseph Jackson. Tudo isso num nível de inglês pré-Fisk. Coloca tudo num envelope branco pequeno convencional [ainda não sabia nada de marketing] e envia. Um mês depois, a carta está de volta: intacta.

1996:
Olimpíadas de Atlanta. Por que Michael Jackson não cantou nas cerimônias de abertura e encerramento? Renata adquire Zooropa, seu primeiro CD do U2. E também Jagged Little Pill, de Alanis Morrisette. E também o primeiro do Garbage. Michael Jackson volta ao Brasil, dança no Morro Dona Marta, no Pelourinho, e beija a testa de Glória Maria. Se Renata fosse jornalista e trabalhasse no Fantástico, ela é que ganharia o beijo no lugar da Glória Maria! Renata precisa tomar uma providência. Mas ele vai embora, antes.

1997, novembro: Renata D´Elia decide se divorciar, simbolicamente, de Michael Jackson e o troca por Michael Hutchence meio "virtualmente", já que o australiano morreu logo depois. Aos 13, Renata aprende, com seu amigo João Luiz, a passar por baixo da catraca do busão e economizar o dinheiro para gastar na Galeria do Rock. Heloisa Lima é testemunha.

1998 - 2004: Durante esse período, Renata cresce, aparece, se apaixona por várias pessoas, e deixa Michael Jackson de lado. Em termos. Seus olhos brilham quando tira pó dos Cds e encontra Off The Wall. Se emociona todas as vezes que ouve, e não são poucas. Não gosta que falem mal de Michael Jackon. Ele já tem 3 filhos, e um dia, sacode um deles pela janela. Renata não entende. Vira sócia do bar. Seu negócio é falar de música. E literatura. E Mapplethorpe. E cinema. E Pasolini. E Fellini. E segue a viver.

2004: Renata não está nas Olimpíadas. Ela se pega de novo diante da TV. Numa terraça velha do centro de São Paulo, um poeta fala sobre A Piedade. Renata sente o coração bater mais rápido. E começa tudo outra vez (só não quis casar com ele).

2005, 2006, 2007, 2008: Renata faz jornalismo. Trabalha com música. Quer se casar com outra pessoa. Quer fazer mágica. Acumulou bagagem musical. Acumulou críticas a fazer. Assistiu uma centena de shows. Já viu Bono e Mick Jagger. Vovó Grace se foi. Renata entrevista várias pessoas. Escreve um livro-reportagem sobre Roberto Piva & a poesia paulista. E, sabe-se lá o porquê, mas começa a se resgatar sem querer, pelos velhos discos de Michael Jackson, que agora tem 50 anos, está falido, desfigurado e desacreditado. Mas ela sabe bem o que já quis. Quer vê-lo ao vivo no ano que vem, é óbvio que ele vai voltar! Quer lhe encontrar e lhe perguntar assim: "você tem noção do que acontece com os outros quando você pisa no palco? e com você, o que acontece?" Quer aprender a fazer mágica.

2009, 24 de junho: Renata sonha com Michael Jackson. [Content supressed]. É um sonho bom. Ela sorri quando acorda. Renata não entende.

2009, 25 de junho, 18 às 21 horas: Sentiu endurecer o corpo e de repente acelerar o coração. Era como se um raio tivesse lhe atingido devagar. Era um fascínio, uma espécie de hipnose, uma atração irresistível diante de incomensurável fulgor. Ela disse NÃO. E depois NÃO! E não conseguiu fazer outra coisa a não ser noticiar freneticamente cada um dos indícios que confirmavam a luz se apagou. A Terra não tem forças para girar.

2009, das 22 horas do dia 25 de junho às 14 do dia 26: Renata D´Elia é jornalista. Não consegue dormir nem acreditar que Michael Jackson morreu. As portas estão fechadas e Renata aperta as mãos contra o rosto como se fosse uma criança loira maçarocada, que tem medo do escuro e de não conseguir sonhar.

2009, 26 de junho: Quando criança, Renata aprendeu que os cabelos crescem quando a gente dorme. E que as pessoas crescem quando sonham. E que as pessoas fazem mágica quando aceleram os corações dos outros. E compreendeu que Michael Jackson era peça-chave desse quebra-cabeças maluco que se chama origem e que se chama paixão e que impele as pessoas a deixarem suas próprias pegadas na superfície do planeta.

2009, 26 de junho, ainda de manhã: Heloisa Lima procura Renata. "Foi a primeira coisa que pensei: quase ninguém sabe, mas eu sei, você começou ali". Pessoas que ficaram nos anos 1990 também. Os recém-chegados não entendem. Renata caminha freneticamente pela casa e durante o banho, desenha com o nariz nos azulejos de vapor. E dorme.

2009, 27 de junho: Renata D´Elia acorda de um sonho fantástico em que crianças como ela caminhavam na lua, observando descargas elétricas espetaculares atingirem devagar os corpos de outras crianças na superfície de todo o planeta. A Terra treme.

* A fita VHS gravada do SBT com o show "Dangerous" em Bucareste quase furou entre 1993 e 1996, mas sobreviveu a todos os terremotos possíveis.

8 comentários:

Unknown disse...

A Heloisa Lima é fã do Michael (para sempre) e sua fã (para sempre também!)! Adorei a matéria, as always too. Um beijo.

Mary disse...

Perdão, criança loira, não fazia idéia da sua paixão pelo cara e tava puta com o povo do trampo fazendo bolão pra ver se era verdade ou não, mão é o Michael, é o meoviemnto midiático que ele causa, o que me irrita deveras. Textos assim mareiam meus olhos. Eu assistia Black and White diariamente no Clip Trip, e fiquei abalada com a morte do Micahel Hutchance porque o ahvia recém-descoberto. Entendo sua dor perfeitamente, perdi a Cássia Eller um mês depois de vê-la de perto, e quase morri junto. Não briguemos mais por fanatismo nenhum, eu te entendo. Bjão!

Renata D'Elia disse...

Ok, Mary Milk, mas a questão não é fanatismo. Fanatismo pra mim é cegueira que motiva as pessoas a fazerem verdadeiras atrocidades, inclusive. A questão são as minhas raízes - ele foi o meu primeiro fascínio. E eu não me lembro de ter feito nada muito relevante na vida quando não estive motivada por sensações parecidas. bjs

Felipe Salomão disse...

Eu ainda estou processando...

Unknown disse...

Como siempre me encantas con tu poder sin igual de tenermos algo en comun...

Leninha disse...

putz...

Anninha disse...

Re....
Cara!
Esse post me fez dar risada, me fez chorar ao ponto de não emitir mais sons e nem conseguir respirar...eu lembrei da minha infancia também, lembrei de pequenina, ficar olhando por horas a capa do Bad, e numa coisa até pura de criança pensar ' eu quero casar com Ele'....
Foi muito bom ter encontrado vcs ( Vc, Dai, Vivis e Helena ) e poder compartilhar esse Amor estranho q a gente sente pelo Cara que esteve tão longe e ao mesmo tempo tão proximo de nós.....

Michael o ''marido'' de todas nós rssss

Viva o FW \O/\O/\O/\O/

Unknown disse...

Porra, D´Elia!! 01 ano e 3 meses depois que o Cara morreu, eu venho aqui e leio o que vc escreveu e caio no choro! Fala sério?! Sim, vc falou! Escreveu na verdade quase a minha cronologia tb em relação ao Michael. Não dá para pensar minha vida sem o cara. A descoberta da música, as tentativas fracassadas dos moonwalkers, O Dangerous, a Traição com a Lisa Marie(chorei dias e noites!), as vindas ao Brasil, a ansiedade por TII e o adeus... Michael era meu amigo. Michael me fez conhecer novos amigos. Michael é tudo isso que vc descreveu muito bem. Michael foi, era e sempre será um sonho real. Sem Mais:Obrigada pelo texto. Nem sei bem o que escrever. estou realmente emocionada.