sábado, 3 de janeiro de 2009

O poeta & a sarça de Deus

6

Quando te aproximas do mundo, Mira-Celi,

sinto a sarça de Deus arder, um círculo, sobre mim;

então mil demônios nômades fogem nos últimos barcos.

E as planuras desertas se ondulam volutuosas.

Quando, porém, te afastas, os homens se combatem entre ranger de dentes;

a vida se torna um museu de pássaros empalhados

e de corações estanques dentro de vitrinas poentas;

infelizes crianças que nasceram em bordéis, escondem-se atrás dos móveis,

com medo dos homens bêbados;

paira no ar um cheiro de mulher recém-poluída;

passam aviadores desmemoriados em cadeiras de rodas;

vêem-se tanques transformados em gaiolas de pássaros;

e submarinos apodrecendo em salmoura de suor;

organizam-se maratonas de hemiplégicos;

nas praças públicas exibem-se claunes paralíticos;

caftens de borboletas fogem para os abrigos;

e as sirenes anunciam que os lobos fugiram das estepes para os corações;

e mesmo aqueles que aprenderam as orações da infância

não ouvem mais ressonar de Deus.

Jorge de Lima, em Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1950)