John Deacon, Roger Taylor, Freddie Mercury Bad Boy e Brian May no estúdio de gravação do clipe de Body Language.
Não é de hoje que eu quero escrever sobre o Hot Space, considerado por boa parte dos fãs e dos críticos como o pior álbum do Queen, alvo da fúria de todo tipo de roqueiro peludo desde seu lançamento, em 1982. Isso aconteceu menos de 1 ano após a passagem triunfante da banda pelo estádio do Morumbi, em São Paulo, onde todos eles choraram como bebês. E eu estava aqui acalmando as lombriguinhas e pensando na morte da bezerra quando as comemorações pelo aniversário virtual de 65 anos de Freddie Mercury pipocaram por nossos corações e mentes no último dia 5 de setembro. Não pude encontrar melhor gancho entre todas as execuções de Bohemian Raphsody e Love Of My Life.
Comecemos pelo começo. Formado em Londres, 1970, o Queen marcou sua identidade em torno não somente do carisma e da excentricidade, mas também da arrebatadora performance de palco e dos maneirismos vocais de Freddie. Ele ainda nem usava bigode, mas já atuava como principal compositor da banda ao lado do guitarrista Brian May, um gênio autodidata de mãos delicadas e riffs singulares. Pra completar, havia as batidas pesadas de Roger Taylor e um baixista magrelo, bastante discreto, mas muito competente: John Deacon era um especialista em eletrônica apaixonado pela música de Stevie Wonder e das lendas da Motown. Além de excelentes músicos, todos sabiam cantar. O cuidado com os arranjos vocais foi um diferencial já nas gravações iniciais da banda.
A vocação para a grandeza também deu as caras logo cedo. Os dois primeiros álbuns -- Queen (1973) e Queen II (1974) -- são híbridos entre estilos bem marcados como o rock progressivo e o heavy metal, o hard rock e o art rock. As apresentações tinham todo tipo de ingrediente dramático que os punks revoltosos e os indies cerebraizinhos renegaram depois. Isso sem contar os cabelos compridos e nos collants abertos no peito cabeludo de Freddie, se revezando entre o piano e o pedestal do microfone, num tipo de entrega dionisíaca que poucas divas já sonharam em ter. Sheer Heart Attack (1974), primeiro disco da banda a emplacar entre os mais vendidos da Inglaterra a reboque do sucesso do single Killer Queen, marca o aparecimento da mistura entre a ópera e o rock que tornou a banda inconfundível em suas obras-primas, A Night At The Opera (1975) e A Day At The Races (1976).
Se você reparar direitinho, vai perceber que os títulos são iguais aos de dois filmes dos irmãos Marx. E também vai notar que a alternância entre um peso metaleiro com baladas melódicas e influências operísticas são a grande tônica da banda nesse período. Mas aí vem a outra guinada musical e comercial nessa história. News Of The World (1977) trouxe dois dos maiores hinos de estádio da história da banda -- We Will Rock You e We Are The Champions --, emplacou nos Estados Unidos e deixou de lado a ópera em prol de um hard rock bem resolvido, ainda com as marcas do Queen. Dali por diante, no entanto, abriu-se espaço para uma virada gradual em direção à música pop americana. Isso começou nos álbuns Jazz (1978) e The Game (1980). Os discos do Queen até então eram vendidos com selos que proclamavam o não uso de sintetizadores.
A esta altura, Michael Jackson havia se tornado referência para além de John Deacon, compositor de Another One Bites The Dust, lançada como single a partir de um pitaco do próprio rei do pop. Clássico instantâneo, a música já não era lá um traditional rock, mas tornou-se um dos singles de maior sucesso da banda. A proximidade de Michael e Freddie rendeu ainda duas parcerias. State Of Shock acabou sendo gravada em dueto com Mick Jagger graças à pressão da gravadora, embora Freddie cante nas demos. A segunda é There Must Be Something More to Life Than This, cuja demo em dueto acabou virando hit entre os fãs no Youtube, com direito a um vergonhoso teclado de churrascaria. A versão finalizada só foi aparecer num disco solo de Freddie, sem participação de Michael.
Agora corta pra 1982. Michael Jackson & Quincy Jones estavam no estúdio gravando o-todo-poderoso Thriller, que teria um de seus pontos altos em Beat It, um hard rock tipicamente branquelo, com participação de Eddie Van Halen. Mas o Billboard Hot 100 ainda estava dominado por baladas do Chicago, Lionel Richie, Olivia Newton John, Donna Summer, os sintetizadores do Human League e outros bichos estranhos ao mundo dos machões com guitarras. Mesmo com a nova fase do heavy metal, as principais novidades ficavam por conta do New Romantic de bandas como o Duran Duran e toda a New Wave. Eis que os quatro integrantes do Queen saem do estúdio e causam um frenesi em torno do lançamento de Hot Space. Mas a resposta não foi das melhores. "O que é isso, new black? Sintetizadores! Funk rock? Dance music? O Queen abandonou suas raízes! O Queen abandonou o rock! O Queen nos abandonou, vamos chorar!" As reclamações de crítica e público foram tantas que a banda chegou a se desculpar ao vivo durante a turnê, uma das mais bem sucedidas de sua história, apesar do fracasso do disco.
Como unidade, Hot Space é mesmo uma obra muito da mal resolvida, embora tenha qualidades. E afinal, que mania mais chata essa de levar qualquer coisa a sério demais! Faltou conexão entre o estilo da banda e o estilo do produtor Arif Mardin, conhecido pelo trabalho com os BeeGees e Aretha Franklin. Parece que eles embarcaram na viagem sem saber onde queriam chegar. Tem micos dignos de um violinista alemão tentando tocar samba depois de duas aulas de cavaco. Brian May força a barra numa pegada funk que não lhe pertence. Freddie, caricato (e impagável), faz a diva da Disco Music em algumas faixas. Roger Taylor não tem material pra descer o braço em meio a tanta bateria eletrônica. O único a se dar bem é John Deacon, que conseguiu emplacar algumas linhas de baixo criativas e grooveadas, no espírito da tal influência negra norte-americana.
Mas essa é a parte óbvia. Vamos agora nos divertir e saborear o chocolate por cima do bolo fofo.
Pode-se dizer que a primeira metade do disco resultou robótica e emborrachada. Stayng Power, faixa de abertura, é a mais Michael Jackson das músicas do Queen. Só que ela quase vai por água abaixo no excesso de sintetizadores. Atente-se para os metais alá Don't Stop Till You Get Enough. Já a pegada de bateria de Dancer, segunda faixa, até soa como uma espécie de Led Zeppelin kitsch-oitentista, sob medida para pistas de dança. É um quase típico hard rock misturado com sintetizadores com adição de um solo de guitarra comedido, que não emplaca, mas pelo menos leva assinatura de Brian May. A terceira é Back Chat, um belo exemplar dessa vibração rock-discotheque, com direito a um destacado trabalho de baixo de seu compositor, John Deacon (olha ele aí de novo!), e os vocais na medida de Freddie. Nunca foi hit, mas costumava render bastante ao vivo numa pegada mais rock n' roll, com auge no belo solo de May.
Também é inegável que a estética de Body Language, quarta faixa toda metida à sexy, inspirou até George Michael em I Want Your Sex. Vai negar? E nem estou discutindo a estética hot-hot do vídeo. Adiante, a divertida Action This Day mistura poucos acordes a uma pegada meio Devo, trazendo também uma pequena amostra do que eram os backing vocals de Roger Taylor nos álbuns dos anos 1970. Depois termina numa incisão bastante interessante de metais. Imagine! Já o hard rock simplão Put Out The Fire, composto por May, tem lá sua gracinha guitarrística mas também não chega aos pés de uma Tie Your Mother Down (1976).
O lado B do velho long-play começa Life Is Real (A Song For Lennon), melancólica e emotiva, totalmente baseada no piano e na voz de Mercury e com uma letra que se equipara às últimas e mais doloridas e nostálgicas do cantor já doente, no fim da década. Calling All Girls pode muito bem passar batido até a chegada de uma outra faixa bastante subestimada, Las Palabras de Amor (The Words Of Love), espécie de hino menor do Queen, com sua pitada muy caliente y latina e refrão suplicante de dar inveja à Madonna de La Isla Bonita. E no fim das contas, o que pode ser melhor do que um quase-reggae-solar, daqueles de dar bom dia às flores, cuja letra fala de um gatinho legal? Não seja mala, não faça a linha do roqueiro burro ou do machão cabeça dura! Embarque em Cool Cat e viaje nos riffs menos Brian May de toda a carreira de Brian May. Estale os dedinhos e vá mexendo a bundinha como o gordinho do comercial dos cotonetes Johnson. Aproveite e deixe pra lá essa vergonhinha recalcada com os gritinhos sem noção de Freddie em praticamente todas as faixas.
Nem tudo é duvidoso em Hot Space, que também tem sua faixa santificada. Em parceria com David Bowie, Under Pressure é uma espécie de ícone incontestável da década, uma canção pop perfeita que também figura em Let's Dance, disco mais pop de Bowie, também acusado de apelar ao que de mais comercial havia no rock. O álbum tem produção do gênio disco-funk Nile Rodgers, mentor e guitarrista do Chic, que depois produziu até o Like a Virgin da Madonna. Mas isso é outra história. O que interessa é que Hot Space merece uma chance. Why can't we give ourselves one more chance?Why can't we give love one more chance?
2 comentários:
Gostei da resenha e da justificativa do "Hot Space", Rê... Este diso massacrado tem a meu ver muito mais méritos que pecados, como a questão de se colocar na nova fase da música... Anyway, só serve pra quem tem miolo... Os roqueiros dumal e xiitas não vão entender muita coisa... Bom, eles já não entendem mesmo muita coisa sobre o rock em si, não é mesmo!?
só uma coisa a dizer...
UNDER PRESSURE!!! tundumdumdururundum...
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