Adoniran Barbosa, na estação Jaçanã do Trem.
Em qualquer lugar do mundo, eu boto a mão no peito quando ouço o verso "Moro em Jaçanã". O gesto é instantâneo, instintivo e incontrolável. É comum também a incidência de sinais de vitória e vibração com os punhos cerrados. Em seguida, vem uma breve explicação sobre a infância na zona norte e sobre como Trem das Onze é uma canção muito mais simbólica do que aquela papagaiada de Sampa ou aquele semi-plágio de New York, New York.
Costumo também sacudir transeuntes pelos ombros e beliscar barrigas de bêbados para que entendam a intensidade do momento. Já fui vista pulando num pé só, dançando em círculos e fazendo figas de olhos fechados ao som do samba de Adoniran. Testemunhas notaram a recorrência dos seguintes comentários:
-- Eu moro em Jaçanã! Eu moro em Jaçanã!
-- Sim, ele existe, é o bairro símbolo de São Paulo.
-- Claro que o Adoniran já esteve lá, seu idiota, existem fotos dele na antiga estação de trem!
-- Vocês não entendem nada. São uns paulistanos de merda! Netinhos das senhoras católicas do Itaim Bibi!
-- Ah, você mora em Santana? E tá falando o quê? Sua casa é igualmente na putaquepariu pra quem vem da zona sul ou oeste!
Já aconteceu em Florianópolis, na Granja Viana, em Paraty e num show do U2. Neste último, houve sintomas de derrame e falência múltipla da testa, após uma série de auto-tapas e batidas na grade de proteção. Mas o maior momento de glória jaçanense se passou em Portugal, na passagem de ano para 2003. Era uma noite fria e chuvosa e um grupo cover do Araketu se apresentava para velhinhos milionários no Casino da Póvoa. Foi quando resolvi abrir minha garrafa de champanhe e comemorar sentada no teto do carro, entoando os versos do samba em voz alta para um grupo de portugueses que chamou a polícia e outro que me acertou com um balde d'água fria pela janela do apartamento.
Encontrar um jaçanense também conduz à catarse. É como encontrar um irmão. Os jaçanenses exilados tornam-se amigos espontaneamente e formam clãs onde a iniciação é feita por meio de crônicas sobre o 701-U - Jaçanã/ButantãUSP, o mais guerreiro dos ônibus. Os rituais da irmandade incluem cinco emocionantes versões de nosso cântico mais famoso. E não estou sozinha. Um jaçanense que não quis se identificar confessou bater no peito ao ouvir Trem das Onze pelo menos três vezes por semana. Há ainda um terceiro que afirma entrar transe após cantarolar os versos "sou filho único/tenho minha casa pra olhar".
Já procurei o médico, mas não tem remédio.
Minha vida toda é uma corrida pra nunca perder esse trem.
Um comentário:
Que bacana isto, pena que minha pátria sofre de uma certa esquizofrenia, você fala que é de Jaçanã, o menos não há equívoco quando ao lugar.
Quando falo, sou de Mauá, tenho que gastar quinze minutos explicando que minha terra não tem cachoeiras maravilhosas, e que minha Mauá é um subúrbio fétido de São Paulo e não o distrito de Resende no RJ e que nossa maior atração é uma refinaria de petróleo.
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