quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Dentes da Memória no Correio Braziliense

O Correio Braziliense deu página inteira para Os Dentes da Memória no sábado passado, 1º de outubro. Quem assina é Bernardo Scartezini, que fez um texto informativo bem pesquisado e uma das melhores análises sobre o livro até agora. 

Destaco também a baita ilustração e o trabalho de arte do jornal, bastante didático e agradável visualmente.  Deu gosto de ver. Segue abaixo reprodução do texto principal. Se não der pra ler, fique com o texto abaixo.



OS POETAS NA CIDADE




Os dentes da memória conta como Roberto Piva e seus amigos espantaram uma ainda pacata São Paulo com sexo, drogas & poesia



BERNARDO SCARTEZINI
ESPECIAL PARA O CORREIO





A fama de Roberto Piva o precedia. O jovem poeta já era figura conhecida na cidade de SãoPaulo no fim dos anos 1950. E nem era exatamente por sua obra poética, não. Era mais notório por invadir as festas dos bacanas, aprontar arruaças pelos bares da Avenida São João e por carregar por aí um séquito de jovens moços. Piva sempre preferiu os moços. Roberto Piva, ele próprio, mal chegara aos 20 anos de idade e já tomara uma decisão para toda a vida: se queria mesmo ser poeta, então que vivesse como tal. “Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental”, repetia para quem quisesse (ou não) ouvi-lo, citando como antecedentes os surrealistas franceses e os beatniks norte-americanos.

Roberto Piva era assim, uma espécie de neto de André Breton,filho de Jack Kerouac, sobrinho bastardo de Mario de Andrade e Oswald de Andrade. E ele não estava sozinho com seus livros, com seus antigos modernistas, com seus poetas & escritores de línguas estrangeiras. Piva não estava sozinho. Claudio Willer ainda era estudante secundarista do Dante Alighieri quando primeiro ouviu falar de Roberto Piva. Os dois se conheceram tempos depois, pela noite da grande cidade, apresentados por amigos em comum. Diz o Willer: “Eu já sabia quem ele era por causa da enorme fama de depravado e pederasta que ele tinha,de se envolver em todo tipo de confusão, além de ser culto, erudito, participar de grupos e estudar filosofia. Ele era o ‘personagem’. Isso desperta muito interesse quando você quer conhecer gente que saia da mesmice e do lugar comum”.

As afinidades eletivas. Os jovens poetas foram se conhecendo daquela maneira que uma pessoa conhecia a outra: em mesas de bares, em saraus, em sessões de cinema, em leituras de poesia, em bebedeiras mil. Piva era o grande agitador. Era o camarada que reunia o pessoal, que recitava poesia de cabeça, que trazia para o país os primeiros livros dos beats Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso... E era ele que via seu grupo de amigos como os beatniks de São Paulo. E eles logo começariam a semanifestar —também—por escrito. Para tanto, foi necessário encontrar a figura de um editor em Massao Ohno, um sujeito pouco mais velho que eles, dono de uma pequena gráfica à Rua Vergueiro, próximo à Liberdade. Ohno não era bom de copo como aqueles rapazes, mas animou-se o suficiente para lançar a Antologia dos novíssimos (1961). Seria a primeira vez para a maioria dos poetas ali publicados— e também seria a última para uns tantos.Um par de anos mais tarde, Piva daria à turma uma obra definitiva: Paranoia (1963).Um livro que passou em brancas nuvens pela imprensa, pela academia, pelo beletrismo, pelo bom gosto dos intelectuais da cidade. Ninguém parecia ouvir os impropérios de Piva— “quando eu ia ao colégio,Deus tapava os ouvidos para mim?”

Roberto Piva emendava imagens delirantes numa poesia sem métrica, ao mesmo tempo rebuscada e irada, trazendo para ao ventre da cinzenta São Paulo a lírica do desregramento que fora buscar em Garcia Lorca, Rimbaud e Lautréamont. Seus instantâneos de urbanidade poética eram refletidos nas imagens em preto e branco das fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee. A partir desse momento definidor, ClaudioWiller também lançaria seus primeiros livros. Willer e Piva entrariam para a crônica paulistana como “a geração
dos anos 1960” ainda naqueles dias de farra. Bem mais difícil tem sido entrar para a história oficial da literatura brasileira. Ainda hoje estão à margem...

Escanteados por seus antecedentes da chamada Geração de 1945 (Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos etc.) e menosprezados por seus contemporâneos concretistas (os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, amigos e dissidentes). Esse cenário, no entanto, vem mudando nos últimos anos. Primeiro por conta das reedições de Paranoia pelo Instituto Moreira Salles (em 2000 e 2009). Depois,
com os três volumes das obras completas de Roberto Piva saindo pela EditoraGlobo (de 2005 a 2008). E agora o interesse pode ser ampliado com Os dentes da memória: Piva,Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia.

Juvenília&maturidade

Os dentes da memória surgiu como trabalho de graduação para as então estudantes de jornalismo Camila Hungria e Renata D’Elia. Elas se aproximaram de Roberto Piva e tiveram a sensibilidade de registrar o máximo de sua memória num momento em que a saúde do poeta declinava ferozmente—ele morreu em julho do ano passado. A partir da convivência com Piva, elas partiram para entrevistar amigos e colaboradores do poeta. Abriramo baú de memórias, que já havia sido mapeado pelo cineasta Ugo Giorgetti no documentário Uma outra cidade (2000), mas que ainda estava para ser impresso em livro. Camila e Renata fizeram mais de 40 entrevistas para poder amarrar a história—e as estórias—de Os dentes da memória. (Um título, aliás, tirado de versos de Piva em Poema de ninar para mim e Bruegel: “Rangem os dentesda memória/ segredos públicos pulverizam-se em algum ponto da América/ peixes entravados se sentam contra a noite...”). O livro traz quatro protagonistas destacados: Roberto Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e Antonio Fernando de Franceschi. Mas eles não são os únicos a terem voz ativa na história oral deste Os dentes da memória. Ao contrário...

Num estilo semelhante ao usado por LegsMcNeil e GillianMc-Cain para reconstituir a história do punk rock no clássico livro Mate-me por favor (1997), Camila e Renata montam a narrativa diretamente nas palavras dos entrevistados, que se complementam mas também se contradizem com frequência, de maneira que as histórias de décadas passadas soam vivas e animadas por diferentes perspectivas. Os dentes da memória traz ainda poemas dos quatro autores.Embora em momento algum, vale dizer, procure se transformar em ensaio sobre aquelas obras. De certa forma, faz bem mais do que isso ao reunir testemunhos sobre a época e contextualizar vida e obra dos poetas dentro da recente e agitada história brasileira.

O primeiro terço do livro, nesse aspecto, é um grande barato—um prontuário de pequenas e médias contravenções praticadas pelos nossos anti-heróis juvenis... Roubar livros de livrarias era uma atividade compreendida e bem aceita no grupo. A casa dos pais deWiller, na represa de Guarapiranga, foi endereço certo para muitos fins de semanas perdidos. E acontecia até, uma vez ou outra, de eles saírem no jipe deWiller dando tiros ao alto em pleno bairro do Pacaembu, acordando a vizinhança. Todo esse clima, no entanto, azedaria com o golpe de 1964 e acabaria em definitivo com a promulgação do AI-5 em 1968. O tempo fechou para os ensolarados poetas.

Detalhe curioso: Antonio Fernando de Franceschi só estrearia em livro na década de 1980, mas ele conviveu com o grupo desde os primeiros encontros. Já Roberto Bicelli publicou apenas um único volume de poesia (Antes que me esqueça, de 1977), mas manteve-se fiel aos amigos, mantém-se. 


Além da poesia beat de Nova York & São Francisco, essa geração também deve ser definida pelo aspecto gregário, pelas aventuras coletivas, pelo companheirismo, pela cumplicidade. ClaudioWiller gosta de lembrar que, quando Roberto Piva apresentava um novo amigo para entrar no bando, os termos mais elogiosos que encontrava para dizer eram: “Este é um perfeito beatnik”. Uma vez dito isso, já estava dito tudo.

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