A primeira coisa que aprendi sobre São Paulo é que o Jaçanã ficava muito longe. Nos anos 1980, meu bairro era um mundo paralelo de sorveteiros apertando buzinas, depósitos de doces, velhinhos de boina jogando dominós nas praças e um imenso milharal diante da janela do quarto. Nas tardes de verão, subia de repente um cheiro de chuva e a molecada corria pra tirar a rede de vôlei do meio da rua. As chuvas ainda duravam pouco. E as crianças iam pra debaixo dos canos e goteiras, onde dançavam imundas até que a água parasse de escorrer. Nas Copas do Mundo, a vizinhança doava dinheiro para comprar tintas e pintar os asfaltos de verde e amarelo. As igrejas tinham quermesses badaladíssimas. E a velha guarda do bairro chamava o centro de "cidade".
Mas a cidade só ficava grande depois de uns 20 minutos de carro. Minha mãe tinha um Fusca. Eu gostava de grudar o rosto nas janelas de trás e arregalava os olhos para os outdoors -- que ainda existiam -- completamente impressionada com as novas sílabas e com os anúncios das cuecas Mash. Gostava de como as avenidas largas cruzavam ruas estreitas e de como bairros vizinhos podiam ser completamente diferentes. E a cidade era o nome de cada artista nas placas das exposições de museus.
Meu pai preferia as Marginais. No carro dele, meus primos me ensinaram a contar até 10 nos momentos de tensão: se não atravessássemos a ponte em 10 segundos, ela começaria a ceder e nós cairíamos no Tietê, onde um monstro gosmento puxaria nossos pés para o fundo. Foi um aprendizado marcante. Até hoje, em pesadelos recorrentes, sinto desespero e horror ao ser atingida pelo petróleo super aderente que transborda do Tietê nas tempestades oníricas.
Quando adolescente, gostava de sentar no banco alto do busão, esticando as mangas dos moletons pra me proteger do frio e ajeitar os fones de ouvido: rock n´roll no último volume a caminho da escola. Mas eu já não gostava muito da escola. O jeito era cabular: eu descia do ônibus num bairro completamente aleatório, escolhia um boteco barato, devorava um misto-quente com coca-cola ou um sorvete quando fazia calor. Caminhava pelo bairro, nas bancas de revistas, nos sebos antigos, conversava com estranhos e por fim tomava a condução seguinte para cruzar a cidade a caminho de casa.
Veio a faculdade. Pegar o metrô subterrâneo na província, observando um entra e sai de gente de toda sorte. E depois subir as escadas rolantes da estação na Avenida Paulista, caminhando eufórica a passos largos, sempre atrasada. A vontade de xingar de estúpidos todos os motoristas solitários, com ar-condicionado ligado e vidros fechados, pagando a cota do engarrafamento recorde na 23 de maio. Por isso mesmo, deixo a pressa pra depois. As noites invariavelmente terminam nas mesas de lata dos botecos na calçada, até que a gente se ponha a correr -- um tanto alterados pelos copos de cerveja -- pra não perder o trem, que vocês sabem, sai agora às 11 horas. Se não, só amanhã de manhã.
11 comentários:
Comeu o quê, Renata?
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Gosto muito da coisas que escreves, vc é uma boa cronista. Essa postagem sua me lembrou de outra que li em outro blog.
Aqui: http://emporiodeestilo.blogspot.com/2009/12/como-pode-sobreviver-autor-dejan.html
Parabéns pelo elogio que recebeu da Barbara Gancia, que foi que me indicou vc e o Sergio.
Sinceramente
Ricardo
ps: Aqui em Santos o pessoal chama o centro de cidade até hoje.ferver
Nossa vida se mistura, se confunde e se soma à São Paulo. Seu texto me inspira. Parabens, SP City!
Prezada Renata, bela crônica. Meu avô ainda chama o centro de "cidade".
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com
Onde você mora em Jaçanã? Moro na Rua Santa Irene.
Beijabraço literal
Aleph Davis
Lindo texto, Rê. Nem parece escrito por uma mocinha, tá com cara de causo hehehe... O fato é que o texto toca, não aguento vc e esses rolês de ônibus, me identifico.
belo texto !
diniz
texto sensível, leve e divertido!
Não conheço Sampa, ouve-se muito falar da violência, do caos... gostei do enfoque que você deu, sua história se misturando com a de São Paulo, retratos do Jaçanã que Adoniran cantou... é, guria, vc faz parte desse mosaico gigante que é São Paulo. Um quebra-cabeças verdadeiro. De um quadro cubista.
Beijos!
Brilhante o texto, Renata!
Me senti muito otário por ter morado 8 anos em São Paulo e não ter conhecido Jaçanã!!!
Parabéns!
Brilhante o texto, Renata!
Me senti muito otário por ter morado 8 anos em São Paulo e não ter conhecido Jaçanã!!!
Parabéns!
jaça 1980 = jundiaí 2010
hahahaha! muita fofura esse texto!
bjs!
Sua Jaçanã é a minha Irajá aqui no Rio. Tem até samba também. Subúrbio é lindamente igual em qualquer lugar.
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