sábado, 5 de julho de 2008

O mundo anacrônico de Martel

Aconteceu ontem, em Paraty, a aguardada mesa com debates entre a cineasta Lucrecia Martel e o romancista João Gilberto Noll, na FLIP. Sob o título genérico de Ficções, já dava pra perceber que qualquer tentativa de aproximação entre os diferentes mundos dos dois ficcionistas cairia por terra. A mediação de Samuel Titan Jr foi competente, mas eram mesmo distintas as vibrações entre os convidados.

A libido talvez servisse como ponto de intersecção. Mas a famosa escrita provocante de Noll, nos trechos lidos de Acenos e Afagos [2008] - em que narra episódios da paixão de uma vida inteira de um homem por seu colega de infância - soaram por demais distantes da intensidade de Martel.[Impossível entender como é que tem gente que enxerga frieza e distância nesse cinema de câmeras que captam sensações e até o suor dos personagens].

Tensão e intensidade estão presentes em O Pântano [2001], A Menina Santa [2004] e aparentemente também na mais nova realização da diretora, A Mulher Sem Cabeça [2008], que tem sua primeira exibição pública pós-Cannes nesta FLIP.

Lucrecia não encara esses três filmes como uma trilogia. "Tudo isso é muito recente para que eu elabore uma teoria sobre eles, mas sinto que um ciclo se fechou". O roteiro de A Mulher Sem Cabeça, aliás, começou a ser escrito em paralelo com O Pântano, mas ficou em suspenso até que A Menina Santa, também engatilhado, se realizasse por completo.

Filmados em Salta, sua província natal, próxima à fronteira da Argentina com a Bolívia, seus filmes têm uma exótica relação com o tempo. São épocas anacrônicas. Histórias que podem se passar em qualquer parte das últimas décadas; exceto no último filme, em que os telefones celulares indicam proximidade com os dias de hoje.

São narrativas que recusam a linearidade, e onde não há a menor premissa de resolução objetiva ou reconforto para o expectador. A arte de Martel é um cinema de iminência, em que o mal estar anuncia algo por vir, mas os acontecimentos se espalham caótica e visceralmente em diferentes escalas temporais.

"Existe um poder nos verbos. O passado é como uma erva daninha que vai tomando o presente. No exercício da montagem é que eu consego misturar passado e presente, remontando os fatos a partir da memória. A memória é que dá o tom", afirmou Lucrecia. E certamente, trata-se da própria memória da autora. A diretora revela que seu estilo narrativo vem da infância, da cultura e da convivência familiar no interior. Principalmente na estrutura dos diálogos.

"A estrutura da fala, da linguagem, da forma. Isso vem de um tipo de conversa cativante que permeou minha infância. De quando as amigas de minha avó, mesmo doentes, fofocavam sobre a vida dos outros num tom curiosamente leve", conta a cineasta, para quem o cinema parte sempre da experiência física e emotiva de uma pessoa. "Por isso mesmo, minha narrativa remete a histórias imprecisas, mas que são extremamente relevantes para as pessoas. E à sensualidade emanada por todas essas pessoas juntas, no mesmo lugar".

O cinema, no entanto, faz menos parte dessas memórias de infância do que os vídeos caseiros produzidos em família. Em Salta não havia cineclubes. Lucrecia via filmes pela televisão, especialmente os westerns - os bons e os ruins. "Gosto quando sou convidada a participar de júris internacionais porque isso me força a assistir filmes. Não tenho cultura cinéfila. Não me sinto parte da comunidade nesses termos".

Lucrecia Martel aprecia filmes que não assumem a realidade como algo dado. Indagada a citar seus preferidos, vai de Bergman, Cronenberg e John Woo. E acha engraçado como ela mesma se tornou referência num tempo presente definido. "Não conheço muito de cinema brasileiro. Mas conversar com estudantes de cinema em São Paulo, aqueles que fazem agora seus primeiros curtas,tem sido muito bom. São Paulo tem uma ressonância em mim".

foto: divulgação/flip