quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Penso

Sabe, Gabriel, é como se você fosse nuvem. Você passa por cima, e eu tento te alcançar. Gosto de te ver distante, caminhando devagar, sussurrando bom dia pelos arredores do prédio. Eu faço qualquer coisa enquanto você observa as meninas: viver uma verdade e omitir outra. Você finge mal, mas pelo menos eu sei. Acho engraçado quando me observa ruminar a comida nesse fetiche absurdo de me ver engolir coisas. E nem pilantra direito você é, embora tenha lá suas idiossincrasias. Você sorri por coisas bestas & se irrita devagar, cerrando os punhos e resmungando palavrões como os meninos contrariados fazem [tão bonitos nos filmes & nos quintais, sempre meio sujos e rasgados]. Você levita na hora do gol. Você vive leve, que nem pipa. Voando torto e belo, no meio do meu céu. Você tem qualquer coisa de paz, homem azul, quando me observa calmo. Ou então não é você, foi só o feitiço.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Mãos frias


O que mais gostava de fazer era meter a mão esquerda com leveza por dentro da braguilha e passar os dedos pela entrada da cavidade úmida, de contornos finos, afastando sem pressa os dois lados do elástico da roupa de baixo, e lambuzando as pontas dos pêlos bem pretos a proteger o recorte rosado da pele; mais branca impossível. Fazia questão que as mãos estivessem frias, pois quando as pontas dos dedos se escondiam nas encostas quentes, uma pequena contração despejava leve mais um pedacinho de líquido, sem cor. Depois de tirar os dedos, brincava de separá-los para observar a textura, e levava-os ao nariz e à boca num ritual de respeito & elegância consigo para balbuciar mentalmente, antes de sorrir: ninguém cheira tão bem quanto eu.

Acontecia em todos os lugares, inclusive quando perigava ser vista. Sentada na poltrona, diante da TV, debaixo das cobertas, à mesa de canto no restaurante chique, à beira do lago nos domingos de sol, debaixo das árvores com livros nas mãos; a hora era o risco. Resguardava-se somente no transporte público. Havia atingido tamanho grau de expertise que certa vez arriscou fazê-lo numa mesa de debates. Os nobres professores discursavam coléricos, enquanto ela repetia o ritual com discrição, protegida pela fórmica da mesa bastante acima dos joelhos, levando os dedos à boca como se roesse devagar os cantos das cutículas. Depois agarrou o microfone num asco silencioso pelo suor das mãos dos outros [além de inexplicável pavor a germes]. E falou.

Outra coisa que gostava de fazer era passar as mãos espalmadas sobre os pêlos pubianos, despida da cintura para baixo, no chão do banheiro. Sempre com música. Gostava de como os pêlos pinicavam masculinos nas palmas macias. Desfazia os caracóis da raíz para as pontas, para erguer um pequeno moicano na linha da pélvis, e depois se mexia para provocar a própria sombra e encontrar a melhor luz antes de apará-los. Os mais finos caíam pelo capacho branco ou pelas toalhas no chão. Deixava seu rastro. Gostava também do próprio suor, especialmente nas dobras das pernas; da prontidão dos fluídos, sempre alerta & bem-vindos, no ar da graça fisiológico da virilidade feminina. Levantava os braços e acomodava bem a cabeleira farta observando o desenho das mamas com o queixo encostado no colo, antes de alcançar as cavidades falsas das axilas com o nariz e a língua. Banhava-se com paixão.

Gabriel não sabia, aquele homem azul. Era o primeiro a chegar e sentar-se de costas do outro lado do escritório; agindo entre lapsos. Silencioso. Caracóis na cabeça & dentes tão brancos. Ela gostava do calor, quando as janelas entreabertas agitavam persianas, numa dança lenta de luz & sombra pelas frestas na direção de pescoço e orelhas, lindo homem azul. Gostava de como ele arregaçava as mangas -- observava nos braços os pêlos bem pretos protegendo a pele branca -- e de quando voltava da chuva, num banho gelado de susto: mãos frias. E ninguém cheirava tão bem quanto ela. Gostava do cheiro curtido no final do dia, a subir devagar quando descruzava as pernas, da umidade na costura das calças finas, e de meter a mão esquerda por dentro da braguilha, clandestina, enquanto Gabriel caminhava ansioso pela sala. Evitava olhar diretamente as mãos dele, para não desistir pelo transpiro.

Fotos: Catherine Deneuve em "Repulsa ao Sexo", de Roman Polanski; e Isabelle Huppert em "A Professora de Piano", de Michael Heneke (2001).